março 30, 2006

"Inspirar, expirar..Inspirar, expirar.."

Greetings.
Hoje não me apetece mesmo escrever. Tenho a cabeça com muitas ideias, mas não me apetece expressar seja o que fôr, ou estar à frente do PC. Além do mais, morro de fome porque passei mais de uma hora no ginásio a malhar de tal forma, que quando cheguei ao WC e me vi ao espelho ia fugindo. Parecia a Rainha das Tomates no país da Tomatalândia. Bonito.
Posto isto e muitas outras coisas que agora, certamente e obviamente, não vou referir, deixo-vos a continuação do meu diário no Egipto. Caso tenham já lido o que publiquei e isso vos interesse...claro. Carolos e beliscões com carinho. L.


Dia 3 19/07/2004 Segunda-Feira

Esna – Edfú – Kom Ombo - Assuão

Estaria uma sombria noite, onde passadas as estreitas comportas da cidade de Esna, se caminhava por entre as misteriosas e desconhecidas águas do Nilo. Navegava-se há horas, numa velocidade incerta, em direcção à cidade de Edfú, depositório do Templo de Hórus, antigo monumento greco-romano dedicado ao belo e sagaz deus falcão, Hórus, filho de Isís, deusa da Magia e Osíris, deus dos Mortos.
O “Beau Rivage” perfurava essas águas, gentilmente, num compasso lento e constante, adequado ao sono profundo que residia no interior de cada cabine, em cada estreito e alcatifado corredor.
211. Silêncio. Silencio. Silêncio...O despertador, com a sua melodia “cartoónica”, iniciava a missão diária. Semi adormecida, e com visão desfocada, consegui parar o telemóvel na sua irritante melodia. Aliás, não escolhi aquela música estridente e barulhenta, na função de desempenhar o meu despertar, por acaso. Como se diz, não há coincidências. 6:45. Tinha dormido cerca de 5 horas e meia. Nada mau. O pequeno almoço seria às sete para podermos explorar Edfú às oito. Mais uns minutos...pode ser?..Deixei-me ficar na ronha confortável e “sabe a pouco” da camita uns 10 minutos, mas depois disso senti a obrigação psicológica e física de me pirar dali. Bolas, estava no Egipto, no meio do Nilo e ia ficar com uma crise de birra, por causa do sono? La, la, la.
Levantei-me e, activa, fazia o circuito quarto/casa-de-banho, casa-de-banho/quarto, variadas vezes. Desliguei o carregador da bateria da máquina fotográfica, que, após ter permanecido ligado à corrente eléctrica durante uns pares de horas, já tinha a luzinha de sinalização do aparelho um quanto tanto..”anormal”. Piscava incessantemente e irregularmente. “Upsssss..muitas horas..”.Abri a malinha de rodinhas, com a roupa amontoada, e saquei uma túnica azul, comprida e bordada. Vesti-a, em conjunto com a minha fabulosa saia de algodão branca, do dia anterior e, posto isto, alterei o esquema espacial para o binómio “desarrumação/arrumação” (costumo dizer que sou arrumada, de uma forma desarrumada), em vista de poder abandonar o meu pequeno refúgio em tranquilidade. “Não me esqueci de nada, pois não?” Peguei nas minhas malas, companheiras de viagem, pronta para iniciar outro dia no paraíso..detive-me. Fui até à janela, à margem direita da cabine e da minha nova cama. Estávamos parados. O rio permanecia calmo, como sempre, havendo, unicamente, pequenas ondulações provocadas pelo barco. O belo céu que pressagiava o nascer de outro dia produzido pela Deusa Mut, criadora do dia e noite, no Antigo Egipto, encontrava-se limpo, sem nenhuma réstia de nuvens, numa intemporalidade lindíssima. Sorri, observei atentamente e pela última vez, aquela fusão inequívoca entre água, ar e terra, fechei as cortinas e prossegui, num andar ritmado e acelerado, o meu caminho árduo e complicado até ao “Buffet”.
Após ter entregue a chave do 211 na recepção, fui tomar o meu desejado pequeno-almoço, indo cumprimentando os outros companheiros de aventura, pelo caminho. “Sim, desta vez dormi.” Ia conversando com várias pessoas sobre o meu ninho de sono. Estava satisfeita. Era a primeira da minha mesa a chegar ao local. Era habitual. O simpático empregado, careca, de bigode e com um francês perfeito, deitou água quente na minha chávena para fazer um belo chá, não sei de quê. Debati-me com ele, comicamente, por causa de uma garrafa de água. Ele, no seu francês e eu..no meu português, inglês, francês, espanhol. Portinglefranespanholarabês. Queria uma garrafa de água para levar para a visita. Não tinha água. Precisava de água. Parece simples..mas não foi. “Water”. “De l’eau..”. Gestos., a minha última salvação. Parecia um espectáculo de mímica na Feira da Ladra. Notava alguns olhares, mas continuava a tentar fazer passar a mensagem ao receptor. Esbracejava tentando transmitir a ideia de calor, passava as mãos na testa, cansada. Com a mão direita, pegava numa garrafa invisível e levava-a à boca, bebendo o seu conteúdo. “Ah!”, exclamou o empregado. Eu, sorri. Bip Bip. Mensagem Enviada.
Continuei a minha refeição, deliciada no chá com leite, saboreando a manteiga de pacote no pãozinho. Surge o “Monsieur” com algo na mão..uma espécie de tigela, daquelas com que damos leite aos gatos. Olhei e ri-me. O delicado árabe tinha-me traxido leite. Pelo menos, era um líquido branco e parecia-me ser leite frio. Voltei ao desespero mímico e tentei representar uma garrafa de água. “A bottle de l’eau..petit.”
Repeti, numa tentativa forçada. “Preciso de levar para o passeio.” Ria-me, sorria, já tinha desistido de falar naquela imensidão de línguas. Voltei, a seguir, a fazer o esforço gestual. “Monsieur” acenou que sim e foi-se embora. Certamente, voltaria com alguma coisa. Só não sabia se iria correpsonder às minhas expectativas.
Ei-lo de volta. Desta vez, com um copo de sumo de laranja, daqueles instantâneos.
Percebi que havia grandes problemas de comunicação, entre mim e “Monsieur”. Desisti. “Água, uma garrafa de água.” Ele sorri. “Ahhh..”. Finalmente. “Vive mais, comunica mais.”, já dizia o anúncio da Vodafone.
Cómico. Disse “Água” e fez-se luz no intelecto do gentil empregado-Tanta língua para nada. Continuámos a tentar dialogar, num estilo mais aprofundado, com o que a nossa vivência nos deu como seres sociáveis e comunicantes, mas a minha guia, Ana, a salvadora dos portugueses, apareceu e, uma vez mais, “salvou-me a vida”. Infelizmente, ali só vendiam garrafas de um litro e meio, algo que não me interessava, por dois motivos: 1º, a garrafa era pesada e eu já carregava coisas suficientes; 2º, estaria calor a mais para beber, apenas, meio litro de água fresco. “Obrigada, Ana.”
Daí a instantes, encontrava-me acompanhada, pois os meus companheiros de mesa surgiram. O senhor do Porto fez-me companhia até as raparigas da Invicta aparecerem, numa azáfama, quinze minutos antes da hora de partida anunciada.
Lá fomos nós.
Saímos do “Beau Rivage”, passando pelo porteiro que nos dava um cartãozinho, imprescendível para, no regressar, podermos ingressar no barco, com normalidade. Como o barco não estava junto à doca, mas sim acostado, lateralmente, a um outro mini paquete, tivemos de atravessar umas quantas salas de entradas, com diferentes recepções e côres que variavam, desde o cinzento ao azul, caracterizadas por um perfume activo e chão lavado para, por fim, aceder ao exterior.
O grupo da Ana juntou-se. 4 pessoas iriam numa charrette, esse transporte, símbolo romântico Queiroziano, do belo “fru-fru” do século XIX que, puxado por um cavalo, proporcionaria uma viagem muito nostálgica e interessante. Era mais que uma viagem. Era um outro tipo de viagem. Viagem no tempo e espaço.
Eu e as raparigas do Porto embarcámos na charrette nº 223. Teríamos de fixar este código, pois após a visita ao Templo e a visita ao mercado, regressaríamos com o mesmo condutor, na mesma charrette. A sensação de entusiasmo, perante tal possibilidade de viagem, que nunca tinha experienciado antes, era imensa e no arranque de tal mini aventura, o trepidar constante por cima da terra batida e o balançar semi deitado em cada curva, fazía-nos apreciar, de uma forma muito divertida e espirituosa, aquela viagem. Com dois lugares de um lado e outro, a charrette era preta, decorada com certos adereços fúteis como berloques coloridos e fotografias estranhas, mais parecidas com recortes de revistas lá do sítio, sendo-nos possível observar uma jovem que segura o seu bébé. Interrogo-me. “De onde, diabo, é que isto apareceu?” De costas, apreciava a paisagem pobre. Casas inacabadas mas habitadas, com roupa estendida no parapeito da janela. Uma loja da famosa cadeia “bata”, fechada. Tudo, o que se apresentava diante dos nossos olhos, estava envolto numa poeira imensa, tudo rodeado de crianças imundas e sujas, pedindo esmola.
Passando umas curvas e umas intersecções, chegámos, em segurança, ao Templo de Edfú, monumento erguido por greco-romanos com o intuito de honrar o deus Hórus, que se apresenta sob a forma de um falcão.
Consegui a minha água, com a garrafa de água “Baraka”, a marca mais conhecida por estas bandas, lembrando-me o “Luso”, com o seu logotipo por todo o lado.
Durante uma hora e meia, percorremos o vasto espaço daquele templo, entramos em câmaras interiores, santuários, sempre rodeados pelas altas e imponentes colunas de outrora, chocando com um número infindável de turistas de muitas nacionalidades, causando um “tráfego” naqueles corredores , diminutas mas regulares paragens nas explicações da nossa Ana.
O ar quente, mas seco, de cada divisão daquela velha casa sagrada fazia aumentar os níveis de suor e sede em cada um de nós. Tento coordenar a minha parte física com a minha parte psicológica, no esforço de conseguir assimilar a beleza do sítio, a par com o “pára-arranque” típico da visita, a tirada de fotografias e a explicação “portugalonhesa” da guia egípcia. Relevos, inscrições hieroglíficas, a história de ira de Hórus para com o tio Seth pela morte de Osíris, teletransportam a “família da Ana” que, após uns flashes pedidos e uns golinhos de água seguidos, aterram no mercado local.
Situado na rua principal que leva à entrada do Templo, o mercado de Edfú estende-se por uns 30, 40 metros, erguido sobre o caminho desértico e empoeirado, onde o som de rodas de charrette se funde com o apelo constante dos comerciantes, tentando fazer brilhar os olhos dos turistas, perante a panóplia de relíquias árabes, lenços brilhantes envoltos nas suas moedas douradas e lantejolas, estátuas, folhas de papiro, turbantes e túnicas.
“Madame! Anglais? Français? Italiana? Spañola? Portuguesa? Ah! Figooooo!” Perante os olhares dos vendedores que disputam um par de euros para sobreviver, deparei-me com esta evidência que o futebol português não era desconhecido. Figo, Cristiano Ronaldo, Rui Costa, Nuno Gomes, Deco..Cada um, ao saber que eu vinha de Portugal, enunciava logo metade da selecção nacional de futebol. Interessante. Irónico. Pessoas sobre o calor abrasador dos 40 graus, descalças, sujas, pobres, com o constante da sobrevivência incerta, sorriem abertamente e conhecem as tácticas da futebolística portuguesa. Mas era esse o negócio delas: cativar para sobreviver.
11:00. Foram-nos dados cerca de vinte minutos para explorarmos a arte de regatear. Depois disso, seguiríamos para o barco, à procura de matar a fome e o cansaço.
Olhei em redor e o cenário, diferente e pobre, apimentou-me o espírito, despontou em mim a sensação do novo e selvagem, cioso de ser descoberto e explorado. Como um novo desafio, observei as bancas. Vislumbrei os inúmeros lenços, decorados com moedinhas douradas: um conjunto forma um traje de dança do ventre. “Vou comprar um”, pensei. E comprei. Ao mínimo olhar preso num dos artigos de um comerciante, todo o processo natural se desencadeia: todos os esquemas valem para chamar a atenção do possível comprador.
Ao longo de 15 minutos iniciei a minha experiência na arte de regatear, conseguindo levar 4 lenços por pouco mais de 5 euros (50 libras egípcias), sendo preciso muitas doses de paciência, de aventura e um pouco de risco. Sempre sob a mira dos vendedores, fui vestida com o fato que iria comprar, sempre com o olho nas minhas malinhas, não querendo correr riscos nas terras do Nilo. O principal vendedor, sempre atento, pediu-me, após concluída a transacção, o meu relógio da Swatch que tanto gosto, de visor azul, com uma joaninha e um trevo nos ponteiros. “Regalo, Madame...”. Ri-me. A gentileza dos egípcios com as mulheres (e com as suas carteiras também) fez-me rir. Olhei para o relógio e constatei que já tinham passado dois minutos da hora prevista, já passava das 11:20.
Com a minha nova aquisição num saco de plástico preto, fino e transparente, soltei-me num passo apressado até perto da zona das charrettes, num local indefinido, amontoado de côres, de um cheiro a terra seca e quente, onde dezenas de transportes se enfileiravam, esperando que mais uma moeda vá ao seu encontro.
Resvalei, entendi que nenhuma das minhas companheiras de charrette ali estava, ficando na dúvida. O que teria acontecido? Os meus olhos alcançaram Ana e a sua bandeirinha laranja que, num momento fugaz e de tilintar de movimentos, se apressou para encontrar alguém que faltava numa charrette qualquer. “E eu Ana?”
Esperei. Duas ou três pessoas do meu grupo passavam, esperavam encontrar um rumo, uma linha que as pudesse devolver à sua bela charrette, um sinónimo de segurança e almoço garantido. Virei-me em todas as direcções, perscrutei as nuvens de pó castanha que se punham diante dos meus olhos, com o passar rasgado e sonoro de rodas gigantes, sempre num esforço inquieto de ter uma referência, fugindo de ser atropelada e invadida por vendedores infantis que, com pulseiras de escaravelhos, tentavam ganhar uma bela moeda de um euro. Mas o facto de me encontrar ali, sozinha e perdida, num pequeno mercado de rua de uma terra do Médio Egipto, fez com que sentisse algum desespero. Em breve, desdobraria todos os movimentos possíveis para me pirar dali para fora, deixando de ser perseguida por crianças, vendedores, egípcios envoltos numa cínica simpatia em troca de um euro, todos decorados nas suas exóticas e encardidas túnicas. De óculos escuros, lenço na cabeça para afastar o queimar de um abrasador sol, cedi aos apelos de um jovem egípcio, muito moreno e de fraca dentição, deixando-me guiar por ele, na possibilidade de me guiar à charrette número 223. Frenética, segui-o. Andámos uns metros por essa rua, consumida pela confusão e caos, desviando-me das gigantescas sacudidelas de charrettes, esperando alcançar uma imagem ou som familiares.
Nada disso aconteceu. Esperei pelo rapaz numa esquina, onde todas as carroças se amontoavam, mudas e tímidas, a um canto do sensasorial mundo islâmico, aguardando um sinal, uma confirmação da descoberta da minha volta para o “Beau Rivage”. “Madame, Madame, un euro!” As crianças, com os seus belos olhos, grandes e meigos, me cercavam numa dádiva de elogios e meiguice, levando-me a sentir tão próxima da sua realidade e ao mesmo tempo, tão incapaz de os ajudar. Um misto de comoção, impotência, solidão, afecto e revolta me entrou no espírito, pois a ver a amargura daquelas crianças, num riso forçado que apenas se mantia à luz de uma moeda, na sua luta pela sobrevivência, fugaz e instantânea a cada minuto, senti-me insignificante, inacessível para o que fosse, incapaz de exigir um cantinho para a minha felicidade. Que posso eu dizer ou fazer? Quem sou eu para pedir mordomias?
O rapaz surgiu. Grata, ofereci-lhe uma moeda. “Shokran, guapa.” Sorri e vi-o afastar-se, sorridente na sua miserável vivência quotidiana, abalando energicamente.
Esperei mas não muito. A ansiedade tomava conta de mim, os segundos não cessavam até observar o laranja esvoaçante de Ana, e os restantes companheiros de viagem. “Puff...aliviada.”
Esquecido o episódio, pedimos ao nosso condutor que nos tirasse uma foto, algo bastante incómodo, quando se é ingénua e ocidental, pois toda a simpatia de um egípcio tem, na maior parte dos casos, a finalidade de receber uma ou mais moedinhas (preferencialmente), em troca. Nenhuma de nós quis dar gorjeta, já nos tinham avisado que a gorjeta já tinha sido aviada, por conseguinte, o bendito senhor passou toda a viagem a zurrar, como um burro, proclamando sons parecidos com “euro” e “madame”. Sons esses que decidimos, em risada melódica e compassada, ignorar, na nossa descontracção turística, sentindo-nos protegidas e superiores, divertidas na nossa altivez indestrutível, certas de um final feliz.
Já passava do meio dia e meio. Volvemos até ao “Beau Rivage”, famintos por uma extasiática refeição, passando os soalhos dos diversos paquetes até passarmos pelos nossos quartos e a belíssima sala de refeições, onde uma meia dúzia de garçons, nos saudava, com um sorriso encantado e uma face polida. “Toda e qualquer semelhança, com a realidade egípcia, é pura e mera coincidência..”, pensei eu. Um barco de cinco estrelas, com tratamento de cinco estrelas, com empregados de cinco estrelas. Sentia-me uma princesa, literalmente, ao pé de toda aquela gente em processo de sobrevivência. Na mesa do costume, com as pessoas do costume, deleitei-me com o prazer da gula, desde a entrada até à condimentada carne, acabando na fruta e na exótica tâmara. Os empregados, nas suas brincadeiras habituais, serviam doses generosas, mesmo que já tivéssemos dito mais de três vezes “stop” ou acabado a refeição, o bom humor fazia parte do pacote que nós tínhamos negociado.
Naquela noite haveria o baile de máscaras e eu, mesmo tendo comprado um belo fato de ventre, sentia-me desconfortável e hesitante, já que a maioria da tripulação, idosa e e muito religiosa, poderia não aceitar bem essa minha ousadia e decidi que em Kom Ombo, no mercado, ensaíaria, uma vez mais, o persuadir do regatear, comprando uma bela túnica.
Meti-me na minúscula piscina, a saborear o “ir e vir” de palmeiras que, ora sumindo, davam lugar a grandes e cheias zonas desérticas com areal e montanha, ora vindo, implementavam uma sensação de fescura e vida nos nossos olhos, como nunca vivida antes. Os passageiros daquele esplêndido barco já faziam um balanço, já trocavam ideias e palpites, excitados e expectantes, envoltos numa brisa quentíssima e abafada, apreciando a beleza natural que uma viagem, de essência inatingível, lhes podia proporcionar.
Os meus olhos perdiam-se, e eu também, ao olhar tamanha infinitude e história. Um cultura perdida, uma cultura emergente. No trepidar de sons, brincadeiras, gritos, chapinhares e risos, perdi-me em cada pontinho que avançava no Nilo, com a abrasadora miragem que me era demonstrada, secando cada milésimo da fogosa aragem a minha eurubecida face, contrastando com a frescura amena do corpo, submerso naquela mini fonte de escapes.
Quase 17:00. Passou-se por felucas, humildes pescadores nos seus barcos e crianças que, nuas e atrevidas, se bamboleavam para nós, sorridentes, desaparecendo num mergulho. Casas cinzentas, desprovidas de côr, já faziam parte da paisagem permanente, na qual já se começava a avistar uma povoação, com a sua estrutra hiper aglomerada, de casas e coisas, com umas ruínas de um templo, situado junto às margens do rio.
Seco-me, visto-me e todos anseiam em continuar a bela visita pela mais enigmática das velhas civilizações, seguindo o seu grupo e a sua guia. “Famíííília”.
A pé, num compasso lento, seguimos pela rampa que nos daria acesso ao Templo de Kom Ombo, dedicado aos deuses Hórus, Deus falcão e Sobek, Deus crocodilo.
Pus creme, factor 40, e avancei frenética, habituada ao gesto automático da tirada de fotografias, de o retirar de imagens invulgares e caprichosas, onde sobreviviam vestígios coloridos dessa longínqua civilização.
O templo, greco-romano, foi dedicado a dois, grandes e antigos, deuses Egípcios e por esse motivo todo o templo é dotado de uma singular simetria, sendo o aproximar do crepúsculo uma hora favorável que nos leva a uma mais confortável posição, com uma fraca e quente brisa a soprar enquanto visitamos salas e santuários.
Não consigo deixar de reparar no fluxo de turistas por aquelas bandas e, claro, em vários portugueses que se denunciam através dos lenços, com a nossa bela bandeira, na cabeça. “Somos portugueses mas não digam nada, é segredo..Chiu..”. Eu e mais umas quantas pessoas velhotas esboçamos um sorriso tímido, sublinhando: “Não há problema, segredo guardado.” Felizmente não vi muitos gregos por ali..
Quase 18:00. Depois da visita história voltei ao mercado local e, uma vez mais, sozinha. Contudo, a atmosfera estava livre de pós e charrettes decoradas com fotos de revistas, pois o mercado situava-se num interior de um jardim, povoado de arbustos e médias árvores floridas, havendo um café ao ar livre onde uma bebida fresca caía sempre bem. Músicos animavam o fim de tarde e fumava-se “sheesha”, o cachimbo de água, generalizado em toda a comunidade masculina islâmica, em muitos cafés do Egipto.
Não parei e segui viagem. Tinha menos de meia hora para descobrir uma bela túnica para a festa, por um bom preço. Dejá-vu. Dezenas de comerciantes emergiram e lojas coloridas com roupa, e lembranças, compunham aquela comprida e estreita avenida junto ao rio. Cautelosamente, averiguei o merchadising até que um escuro e sujo comerciante, de dentição desfalcada e hálito fumarento, me fixou por estar a observar uma bonita túnica azul escura bordada. Logo veio o “ataque”. Não poupando esforços, o hábil egípcio buscou a vestimenta situada no topo da sua tenda, bem acima do nível das nossas cabeças e logo pediu 500 libras egípcias, equivalentes a mais de 50 euros. “Oh excelente. Vamos lá jogar um pouco este novo e interessante desafio.” Desta vez, foi mais difícil ganhá-lo já que tive de virar costas ao inteligente vendedor umas cinco vezes, apanhar com gafanhotos velozes, algumas agarradelas de braço, dois olhos vidrados, fixos de plena fúria e uma voz que se fazia ouvir a duzentos metros de distância. Felizmente, arrecadei a túnica composta por duas partes separadas, por menos dez vezes aquilo que o senhor me tinha proposto inicialmente.
Agradeci, com o ego triunfante. Uma mulher de preto, apenas com parte da cara visível, agachada no chão, perto de um cesto tapado, me chamava, flexionando o dedo indicador, faiscando o seu olhar de malícia. Hesitei, sentia-me compelida a destapar o cesto, arriscar, fazer o que a mulher queria mas não o fiz. A pressão das horas fez-me acelerar o passo naquela avenida junto à água, esquecer o cheiro cozinhado de suor, especiarias, tabaco e perfumarias exóticas, fez-me, porém, ficar com a dúvida do que realmente estaria no interior daquele cesto. Talvez foi melhor assim. Quase 18:30.
Tive acenos e olhares dos meus companheiros de viagem que por ali vagueavam, felizes da vida e, de certeza, mais pobres. Estava determinada a juntar-me a eles em direcção ao “Beau Rivage” mas um moço, magro e da minha altura, impediu-me, atravessando-se-me no caminho com um curioso instrumento musical. Sorri porque ele tocava, suavemente e bem, fazendo com que parasse, com que me esquecesse da pressa para me arranjar para o jantar, que me esquecesse de tudo, ouvindo paralisada um belo som, vibrante e místico. Regateei mas não muito. A pressa ressurgiu pois em breve o barco iria renascer, em vida pelo leito do rio Nilo. Levei o belo instrumento, uma “Rababa” e corri, meio perdida em direcção ao meu rumo.
Já passava das seis e meia. Tinha meia hora para tomar banho, escolher a minha fantasia para a festa árabe e arranjar-me. Mesmo assim, sem saber bem o que vestir, decidi refrescar-me na piscina, numa fim de tarde quente e viva, onde sentia que cada dia passava tão depressa como um segundo, numa escassez de temporalidade crescente e irreversível, como se cada dia fosse metade do anterior, como se o mais belo e lindo não conseguisse ser suficientemente vivido, tendo de ficar num passado que talvez não retornasse para mim. Mesmo nostáligca, senti-me feliz. As palmeiras, o deserto, o cheiro, o árabe silibado à distância pelos empregados, o sossego do coração, um pôr do sol, lento mas imponente, levavam-me a esboçar um sorriso para mim própria, como se eu fosse detentora de todos os meus sorrisos e alegrias naquele bago de felicidade temporal.
18:45. Tinha excedido o meu tempo de filosofias e resolvi explorar o meu pragmatismo aventureiro. Tinha exactamente quinze minutos para me sentir bem comigo mesma, ou seja, lavar-me, vestir-me, pintar-me, entre outras coisitas. Adoro aventuras.
Despi-me numa velocidade que não conhecia, atirando cada peça de roupa aleatoriamente pelo quarto, correndo pedaços de metros, fugazmente. Abri a torneira do duche, e esfreguei a minha densa massa capilar, cantarolando, com fúria do tempo que não parava.
Limpa e enrolada numa toalha branca, decidi experimentar os véus que produziriam um fato de dança do ventre, preto, composto de moedinhas douradas. “Bolas, telemóvel a tocar.” Err..Atendi mas tinha pouco mais de cinco minutos e, na bela decoração cénica do 211 com peças vestuárias no chão, na cama, na cómoda, na mala, um pouco por todo o lado, consegui disfarçar a transparência da minha máscara para aquela noite. Olhei-me ao espelho e maquilhei-me, utilizando o básico. Não tinha tempo e queria sair do sufoco do quarto para encontrar os meus amigos de viagem, nas suas máscaras, nas suas novas identidades, queria sair dos quinze minutos de pressão para viver duas ou três horas de descompressão total, sem inibições ou restrições. Saí do 211.
Cá fora, ouvi alguns assobios e sorri, avançando num compasso seguro e regular até à porta do bar para tirar uma fotografia. Tirei uma foto acompanhada mas o fotógrafo não desistiu e quis repetir a dose..O resultado é que não foi bom, ne c’est pas?
Cumprimentei todos que vi. Uma onda de boa disposição tinha entrado no barco. Não interessava a idade, nem donde vínhamos ou até se erámos meros desconhecidos juntos sob o mesmo tecto, mas marcantes eram os sorrisos que se contagiavam a si mesmos, os sorrisos e os olhares brilhantes que uma vez saídos, tão cedo não iriam adormecer. Ao invés, serviriam para libertar outros espíritos interiores, outras simpatias, gargalhadas e divertimentos. Era para isso que ali estávamos. Para sorrir.
Desci as escadarias para a nossa “cantina” e deparei-me com algo de novo, diferente das outras noites. Encostada à porta, vi um grupo de músicos, ao fundo da sala, a fazer soar ritmos velozes e alternados nos seus tambores, andando e formando uma roda, com roupa típica e com pequenos chapéus de algodão. Também eles sorriam e entoavam sons, cantarolavam. A iluminação da sala aumentava a unicidade daquele momento, havendo apenas uma quantidade de velas acesas, dando um aspecto sombrio, misterioso, onde pequenas sombras se formavam, os movimentos dos mascarados pareciam suaves e delicados como veludo, onde as feições dos rostos e a múltiplas roupas, feitas de lantejoulas, cores preciosas e bordados rigorosos, davam uma sensualidade lúgubre à arquitectura da sala. Mas eles pararam e eu acordei para o jantar.
Bateram-se palmas e fizeram-se muitas exclamações, à medida que se restaurava a electricidade e a magia se dissipara para dar lugar ao início de um também fabuloso banquete, vendo-se um buffet rico de travessas volumosas, pães variados, pratos que esfumando cheiros e especiarias, me fizeram abrir o apetite e aguçar a curiosidade.
Todos se dirigiam em direcção ao buffet, deixando uma vastidão de cadeiras sozinhas, onde cada um dos meus companheiros de aventura, envoltos nas suas belas máscaras, turbantes e pinturas, dialogavam e sorriam com os empregados, doseavam as suas refeições tirando de tudo um pouco, apimentando e picando os ingredientes.
Na nossa mesa, comemos, experimentamos a gastronomia egípcia: a carne com o temperado picante e aromático, o peixe com molho de tomate picante, as entradas, o pão fino e estaladiço, quente e delicioso.
A banda sonora daquela sala era constante, uma sinfonia de alegria, espírito e boa disposição, onde cada um encarnava uma personagem feita de novos sentidos. E eu e os quatro da minha mesa continuávamos, sorridentes. A fazer viver aquela festa.
Fim do jantar. É altura de avançar para o andar de cima, tendo como destino o bar. A pista de dança estava prestes a abrir, o D.J. já ensaiava o som que iria compôr aquela divertida festa árabe. Que festa está completa sem uma boa música para a malta aproveitar? Estava ansiosa para ir para a pista e dançar. Queria praticar alguns dos meus modestos conhecimentos de dança do ventre, uma arte que me entusiasmava bastante pela sua subtil beleza. Braços firmes mas ondulantes, cabeça direita, corpo energicamente lento e coordenado, rodando sobre si mesmo, tendo como guia a parte traseira do corpo num movimento fulminante e convicto. A difícil dança do ventre.
Falei com o simpático D.J. argeliano enquanto todo o grupo não se reunia e, antes que se fosse dançar na pista até gastar a sola dos sapatos, cada grupo tirou uma foto de recordação com o seu guia. Não pude deixar de sentir orgulho naquelas pessoas que faziam parte da minha vida há quarenta e oito horas e, no entanto, eram-me quase desconhecidas. Nada de relevante sabia delas, apenas conhecia a aparência.
21:30. Música. Todo o grupo se iam agrupando e, pouco a pouco, as senhoras da 3ª idade soltavam a sua irreverência sob os focos de luz, lembrando todos os “clichés” de filmes, anúncios ou imagens onde a mais inofensiva das velhinhas se revelava um animal selvagem difícil de domar, numa energia cómica e surpreendente. Dancei com os meus companheiros, fazíamos rodas, coreografias e cada um se mexia na sua forma mais particular. Todos temos uma personalidade. Todos. E uma personalidade distinta.
Acabei por sair dali passado algum tempo, apesar do barulho intenso das minhas moedinhas espalhadas pelo corpo e do encaixe numa nova personagem que morreria daí a escassas horas. Resolvemos jogar às cartas no terraço do “Beau Rivage” onde, já parado numa cidade egípcia chamada Assuão, se estava ainda quente e abafado, numa noite ideal para dormir sob o céu estrelado e magnífico do Médio Oriente. Nas nossas fantasias, jogámos, falámos e, mais tarde, deitámo-nos nas espreguiçadeiras junto à piscina, cansados do dia, cansados de nos divertirmos, querendo apenas observar o céu e ouvindo a música islâmica que vinha dali perto, de uma fantástica festa de casamento. Deitada, sentia que podia fechar os olhos e deixar-me embalar pelo calor da noite, pela frescura do ar, pela luz apagada das constelações, pelas notas árabes de uma festa que parecia distante, o suficiente para me adormecer sem incomodar nenhuma réstia dos meus sentidos. Arrastada pelos véus que me enfeitavam e pelas moedas que fugiam, reconhecida à distância pelo barulho que caracterizava o meu movimento, desloquei-me, levantei-me, perdida de sono. O cansaço vencia-me, o meu aspecto desgastado e “usado” de uma noite ímpar me levava a procurar um refúgio isolado e calmo, um berço para repôr o sono. Houve alguém que me apelidou de “Shakira” e no meu sorriso dormente, deixei-me comandar mecanicamente até à porta do 211, “jinglando” a cada passo, esquecendo quem era ou o que estava a fazer ali, regressando a uma cama que poderia até ser uma qualquer, normalíssima, igual à que tinha no meu quarto a mais de quatro mil quilómetros de distância.

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