março 12, 2008

"Lacrimae Rerum" - continua...

O momento.

Ding dong. Ouvem-se passos distantes que afunilam num crescendo sonoro até que uma voz, distintamente masculina, interroga o alegado intruso. “Quem é?”, inquere com firmeza.
A moça baixa, que estava do lado da rua, de fisionomia rebaixada e corcunda, todavia detentora de um cabelo muito louro e ondulado, envergonhou o olhar azul, acanhando-se por debaixo do boné vermelho. ”Boa tarde senhorrr, cômô ixtá?”, soletrou a medo a ucraniana ou russa, ou uma menina daquelas bandas, que segurava uma resma de papéis publicitários a uma grande superfície.
Clik. Ele já tinha visto tudo por detrás do óculo, mas decidiu dar o benefício da dúvida, já que raparigas de tez clara, cabelo fio de ouro e mau português são mais raras e ele sentia-se tremendamente aborrecido. “Estou bem obrigada e a menina?”, rematou com um sorriso arrasador.
Pum! Lá se foi a papelada para o chão, um rasgo forte de vento arrastou o boné e a boca da miúda descaiu, tal era a expressão de surpresa e fascínio naqueles olhos, que se outrora já foram misteriosos, agora não faziam quaisquer tenções de esconder um brilho de luxúria e desejo. “Senhorrr...você está a deixar-me louca..”, sussurra, à medida que se aproxima dele, em passos sensuais, com os canudos a roçarem a pele pálida. “É o homem da minha vida e vamos ser felizes..”, continua a “Nikita”, espetando lentamente os lábios finos.
Ele retribui. “Amo-te e agora que te encontrei, não te vou perder”. O céu azul profundo protege os dois amantes, que naturalmente selam o sentimento inesperado do momento com um beijo longo, suavemente, como se a ampulheta do tempo deixasse de funcionar e a constante dos segundos parasse. Perdidos naquele trocar de carícias, ele levou-a para a sua vida, pegou-a ao colo, sorriu, à medida que uns violinos acompanhavam os sorrisos pepsodent em slow motion..

“Miguelll!”. Susto. Lá se foi a ucraniana e, nem em sonhos, conseguiu o seu número de telefone. Bem, a semana passada foram brasileiras e cubanas, desta vez, a mulher da sua vida tinha hálito a “bife tártaro” mas era diferente, sem dúvida alguma, pensou, à medida que se aprumava para a reunião. E, claro, para um encontro com um dos intermináveis contactos da lista telefónica.

fevereiro 09, 2008

"Lacrimae Rerum"

Ela.

"Ana, és linda". Já tinham passado mais de cinco anos e ainda hoje aquelas palavras pareciam as primeiras e, ao mesmo tempo, as derradeiras, as mais importantes da sua vida, como se fossem dádivas da linguagem humana. O som saboroso, sussurrado e silibante proveniente daqueles lábios bem delineados e carnudos, desencadeava um entorpecimento dos sentidos que, até então, jamais havia conhecido.

De pálpebras cerradas, ela permanecia, impávida e serena, no mesmo local, mas tão determinada, que seria, para quem deambulasse ao seu lado, uma forte presença, um sinónimo de força inabalável. Indomável. Saboreava a brisa cortante, que empurrava grãos de areia para o canto dos olhos, e que rasgava a face lisa de pele aveludada. Apesar das mãos compridas e finas nunca aquecerem, o coração estava numa constante ginástica, feita de avanços e recuos, jogos de flexibilidade, em dose exagerada, que a transformam no expoente máximo da inflexibilidade. Os lábios finos já se queixavam, estavam secos, o calor apertava e réstias de suor colavam o top laranja às costas.

Ana. Abriu os rasgados olhos de avelã e presenciou a revolta da natureza. E tentou sair de dentro de si, mas o mar mostrava-lhe aqueles lábios. E tudo voltou, numa agonia indescritível: a perda, a solidão, a saudade, o amor que jamais voltou a renascer. Era um formigueiro, uma comichão que crescia a cada centímetro, ardia, doía, matava, moía. Uma lágrima desceu por aquela cara linda e, dez segundos depois, a figura incontornável da indomável mulher numa praia semi-deserta desvaneceu-se, dando lugar a uma criança frágil que fugia da vida.

Ele.

"Não sei donde vens, mas sei que o teu destino é aqui". A velocidade a que corria era frenética, mas ele sonhava, com os olhos a brilhar depois de a ter conhecido, com a lembrança daquelas palavras que proferiu, gravadas no seu pensamento.

"Olha, 200 mg de adrenalina, rápido, que está a entrar em taquicardia! Mexe-te!". O cabelo raspava no H2O circundante, ele lá corria no corredor, enfiado na bata semi-branca e os dedos das mãos robustas e possantes, delineados pela circulação sanguínea palpitante, saltavam à vista como peças de dominó em escada, numa agilidade mecanizada. "Já está!", proferiu, num som saboroso, silibante, sussurrado, proveniente de uns lábios delineados e carnudos.

Miguel. Os olhos verdes, cerrados e numa expressão grave, deixavam escapar muito mais do que parecia. Virado para o jardim do hospital, o espelho da alma perscrutava as sombras das árvores, à procura de um sinal dela. Da força indomável no olhar cor-de-avelã rasgado, nos lábios finos e rosados, daquela luz de presença naquele hospital.