junho 15, 2012

Colisão frontal, eucaliptos e a dor da independência (V)

Tic tac. Tic tac. Nada mais era permitido ecoar, entre aquelas quatro paredes, para além da minha voz e do bater dos ponteiros do meu relógio de pulso, tao audível que fazia tremelicar qualquer formiga esfomeada, por cima de uma migalha de comida, de arte ou de algo mais, fosse lá o que fosse, algures perdido no tempo, jazido no soalho.

Diante de mim, com o cabelo grisalho vistoso, ainda que desalinhado, o M. escrevinhava, num esforço inesgotável, para acabar finalmente com a parte morosa da burocracia, deixando escapar um ar macambúzio e gelado, os olhos fixos no papel - que, em boa verdade, nada era senão mais um elemento ocioso, através do qual se protegia - e o lábio inferior virado do avesso mas severo, como uma criança amuada à espera do doce que não chega. O nariz, ligeiramente abatatado, não era excessivo na proporção da face, ao invés, transportava uma certa jovialidade cómica que transmitia um fervor para os dedos, ansiosos e irrequietos para lá chegar e brincar com o órgão do olfato. Porém, o que me despertou, naquele momento, foram as mãos. Dedos grossos, calejados e fortes. Dedos de quem trabalha, de quem pensa, de quem resiste. Dedos que transportam força, ainda que camuflada por tanta doçura. Pensei na bela doçura que aquelas mãos poderiam dar e o calor que poderiam fazer sentir. Todos podem sentir o que quiserem dentro de si, mas poucos podem expressar e concretizar essas emoções, carregadas pelos mistérios do cérebro. Aquelas mãos destilavam amor, carinho, força e integridade por cada ruela daqueles poros velhos. Não eram bonitas, não eram suaves, mas carregavam a natureza da vida.

Enquanto o destino me prendia àquela cadeira, desenhada com veios de uma densa antiguidade, perscrutei ainda mais aquela expressão solitária enrijecida pelas linhas do rosto, traçadas pelas partidas que surgiram desde o seu nascimento. Definidas pela reviravolta da ampulheta do tempo que, implacável no compasso do seu andar, com o derradeiro escape de cada grão de areia, não consegue provocar indiferença por onde toca. Acontece, mas não pára. Perdoa-se, mas não se esquece. Esquece-se o passado, mas influencia-se o futuro. Ou, se trocarmos as voltas às lógica do otimismo irracional, colocando o realismo na linha da frente, o tempo cria cicatrizes na nossa alma, irreversíveis, mas cujas feridas lambemos como cachorros indefesos, como se fosse a suprema cura para alcançar a vitória frente ao próximo male. Só que o próximo male tem por hábito ser maior e atingir no mesmo sítio da massacrada ferida.

Ring ring. Despertei da minha investigação com um toque constipado de um telefone bege, outrora escondido por livros, capas rijas e cinzas de tabaco, que transformavam a mesa num objeto de decoração de um café noturno. "Está? Sim, não há problema... Sim, claro." O que antes parecia ser um silêncio ensurdecedor, transformou-se praticamente num recital de poesia, com a voz forte, rouca e densa do M. a preencher as lacunas da sala, com uma dança de sorrisos com os olhos. Timidamente, comecei a rasgar o meu sorriso, não por causa da conversa - irrelevante e banalíssima -, mas pela impaciência infantil com que M. estava a lidar com o assunto. "Obrigada", atirou com firmeza, devolvendo o auscultador do telefone ao descanso, com aquela firmeza que, tantos dias depois, viria a ansiar reencontrar. "Está tudo bem?", experimentei. "Sim. Bem, sabe como é... confusões." Num discurso inflamado, contra as injustiças da sociedade, M. deu vida a mais um cigarro, mais um ponto alaranjado iluminou aquela sala com tanta escuridão, enchendo o metro e meio que nos distava com fumo que se amontoava e apalpava, tais eram as chupadelas que dali retirava. Se aquela voz enchia a sala, uma personalidade carismática e determinada começou a chegar aos meus olhos. Ainda que, até então, fosse parco em palavras, a extroversão, rara e quase considerada pela sociedade inadequada para um homem com mais de 40 anos, começou a ressurgir. E lançado o mote, não resisti. "Fuma aqui dentro porquê?! Sabe que não se pode fumar em locais fechados... e está aqui um pivete...". Manteve a postura séria, sem desarmar a expressão e frio replicou: "No meu gabinete mando eu. O gabinete é meu, trabalho aqui, portanto eu faço o que quiser, inclusive fumar." Não respondi, nem ousei. Lancei apenas um sorriso, e com sucesso, não tivesse o M. feito um convite com os seus olhos redondos e grandes, que lançaram faíscas de dor, durante aquele quarto-de-hora passado.

Ouviam-se, por certo, a largos metros de distância os nossos passos, dada a pouca afluência de alunos por aqueles corredores amarelados, com pinturas, mini-esculturas e peças de olaria a colorir a neutralidade das paredes. Como uma discípula, seguia a figura do M., que se tinha oferecido para me mostrar os recantos mais interessantes da universidade. Afinal, eu era uma entusiasta de história, de arqueologia e de arte. E nem a situação constrangedora em que nos cruzámos, graças aos misteriosos desígnios da vida, ditaram a expulsão da minha figura daquela sala de fumo, nem o fechar a sete chaves do capítulo do choque frontal na A5. Um choque de titãs. De duas almas fortes, mas com o coração em sobressalto. "Agora vou-lhe mostrar a minha sala favorita", advertiu, deixando o sorriso amarelado, desenhado com o toque persistente da nicotina, aparecer à luz do dia. Assenti e passei por uma porta, descendo meia-dúzia de escadas de pedra, com uma imagem esplendorosa a apoderar-se do meu raio de visão. "Uau", deixei escapar, com a ingenuidade de uma criança, espantada pela conjução de cores, odores e misturas históricas que se ergueram naquele instante. Dos passagens estreitas, inertes como a estrutura de um hospital, rebuscadas com pedaços de arte, saltei para uma fonte de inspiração, onde qualquer sonhador, artista e filósofo adoraria passar horas, numa comovida sensação de fazer amor com o universo, com o mais belo que há. Um estímulo sexual aos sentidos. Naturalmente, não fui exceção.

À nossa volta repousavam estantes, dezenas, centenas talvez, que cercavam toda a sala, quadrada, como muralhas de uma cidade medieval. Centenas de documentos, livros, portfolios e fotos, numa junção proveniente de uma dose elevada de loucura e também de coragem, davam o cunho histórico de uma biblioteca secular. No centro estavam uns estiradores, em forma de U, com cadeiras, que reforçavam os contornos acolhedores da sala de aula. Pincéis adornavam as mesas de trabalho e resquícios de tinta, bem como o seu cheiro, marinavam entre as paredes, gastas e escuras, fundindo-se com o bolorento odor do estuque. Pelo ar caminhava ainda o aroma a papel velho, a pensamentos queimados, uns quantos que terão ocorrido, em comunhão, numa salutar conversa entre alunos e professor, sobre princípios cujos fins ainda não estavam traçados. O que me fez recordar, num ápice, os tempos em que desejava pensar, porém com forçada atenção, naquelas mesas viradas para um crucifixo, em cima do quadro. A diferença é que, então, tudo parecia automatizado, à semelhança da minha vontade de estar naquelas aulas. Ali, tudo é natural, espontâneo, desejado e vivido até à máxima glória. Não precisei muito, apenas escassos segundos, para ter a certeza: o M. era um excelente professor e, principalmente, um excelente formador. O carisma, o sarcástico sentido de humor e aquele amor, camuflado por uma aparente frieza, mas real insegurança, eram os ingredientes perfeitos. Senti uma pontinha de inveja daqueles alunos. Será que ainda me podia permitir viajar, como uma jovem de 20 anos, trancada para sempre naquele éden intelectual, sem receber contas, despesas e responsabilidades estúpidas de um adulto típico, ou seja, sempre aborrecido de si próprio?

"Este lugar é excecional...". Aqueles olhos firmes voltaram a focar-se em mim, mas com alguma admiração, em vez de uma incontrolável raiva pelas decisões que o fado lhe trouxera como oferenda."É, não é?". Sorri, rendida. Caminhei, abraçada à humidade claustrofóbica da sala, apreciando cada segundo de cores, pinceladas, peças arqueológicas que o M. me mostrava e que tanto calor no coração me despertavam. Entre as explicações sucintas daquele homem - que as Estradas de Portugal tão amavelmente me haviam apresentado - e a catarse que os elementos causavam no meu corpo, vislumbrei umas estreitas escadas de madeira no lado esquerdo, quando estávamos virados para a porta, junto ao canto. Havia uma passagem para um segundo nível. Acima das prateleiras que me beijaram os olhos, quando ali surgi, estavam mais uns quantas, à primeira vista, abandonadas. "Que teto alto", julguei. Ao meu lado, M. sacava mais um cigarro, perante o meu olhar de espanto, antes que se transformasse numa reprovação silenciosa. Pouco tempo demorou, na realidade, tal como a minha permanência na sala mágica.

"Tenho de ir", atirei, triste. "Está a ficar tarde e estão à minha espera. Mas gostei muito desta visita... e desta sala." O M. sorriu, com o seu ar altivo, erguendo com orgulho um cigarro que me entontecia. "Quando quiser, pode aparecer", despachou, num discurso rápido, como se o medo pudesse impedi-lo de pronunciar aquelas palavras. "Obrigada, sim. Gostava muito de assistir a uma aula." Despedi-me do inebriante festival de elementos, virei costas e caminhei até à saída. Mas, naquele momento, não estava somente a virar costas a um edifício, mas a uma pessoa. Era uma despedida que, estranhamente, não queria celebrar. Deveria e poderia. Era o fim de um ciclo, o arrumar, em definitivo, a novela do meu carro, machucado, à hora de ponta, na pontinha de Lisboa. Não era isso, porém, que sentia. Era o fim do contacto com um homem diferente de todos os anteriores e que, talvez por isso, me tinha injetado no coração uma esperançosa luz. Confusa, nos labirínticos corredores, nunca deixava murchar um sorriso jovial. A cabeça não parava, como uma escada rolante em modo turbo, mas o esgar dos lábios, em forma de coração, não se apagava.

Calor. Luz em modo ecológico. Ressurge Lisboa, na sua beleza histórica, perante os meus olhos, com um elétrico amarelo a trilhar uma perpendicular vizinha. O inevitável adeus a espalhar charme. Seria a derradeira despedida? M. furtou mais um cigarro de um "não sei quê" bolso dos jeans azuis cansados. De pé, aspirava aquele prego do caixão e uma proeminente barriga despontou sob a luz da cidade. Agradeci, com um nervoso miudinho a trepar pelo estômago até se instalar, confortavelmente, na garganta. "Até um dia destes". Ele, escondido pela trepidação do fumo, tinha adquirido a proteção perfeita para se esconder da rutura. De fisionomia séria, esboçou uma despedida com os beiços, num gesto de aparente indiferença, como se nada fosse, como se o cigarro fosse a sua única amiga e amante, a sua única companheira, por lhe ser eternamente leal, mais do que fiel. Olhei. Lancei mais pensamentos através da mente do que com a fala, por uns breves segundos, até o alarme do "já chega" tocar e alcançar-se a fronteira do impoliticamente correto e bizarro. Sorri e virei costas, deslizando e empurrando o cortinado dos meus cabelos escuros compridos, por aquela rua, agora parecendo-me ainda mais preta do que tudo o que carregava, dentro de mim, até lá chegar. E assim, desliguei, esqueci, apaguei. Desemboquei noutra esquina, composta por uum arco-iris fabricado de uma feira popular, para me distrair dos momentos do tão fresco passado. Não por temer nada do que aconteceu, mas pelo temor do tudo que nunca poderia vir a acontecer.

junho 11, 2012

Colisão Frontal, Eucaliptos e a dor da independência (IV)

Era um velho dia de setembro, mas um calor estonteante bafejava-me o rosto sem mostrar quaisquer sinais de misericórdia. E mesmo que o choque, das recentes horas, insistisse em martelar-me na memória, à semelhança do embate do meu pára-choques a uma Suzuki preta, empoeirada pelo sabor a eucalipto do crepúsculo, um campo de borboletas decidiu rebentar dentro de mim e o meu corpo quase levitava, embora a lei da gravidade conseguisse provar, como sempre, o oposto.

Afinal não tinha arrumado o incidente de viação numa gaveta, com direito a tranca, cofre e urna dourada. Não. Dias depois, o M. ligou-me e informou-me: "a declaração amigável tem um erro nos dados." Enfim o reencontro. Por último, o contacto fora daquele cubículo chamado "sala de acidente na A5". É a mesma coisa que uma sala de espera de um dentista ou de um ginecologista, na qual o constrangimento natural supera a natureza da alma mais genuína. A música mastigada por dois acordes manhosos, revistas (re)mexidas com cantos polvilhados de cuspo e impressões digitais com odor a ranço ou os sofás que sobraram da última edição do Stock Market. Tudo isto em conjunto com a hipótese da televisão com 20 anos estar sintonizada nos programas da Júlia Pinheiro ou da Fátima Lopes desenvolvem as condições - necessárias, logo, perfeitas - para que os presentes se atiram para o fenómeno da "não comunicação" de cabeça, soprados pela autoridade sublime de um deus chamado padrão cultural social. Caso contrário, serão punidos. Um sorriso ou um gesto dessincronizado do todo o poderoso, invisível mas presente naquela esmagadora sala, pode dar azo a um olhar ou sussurro, assombrosamente, esmagadores.

Assombrada continuava eu pela beleza de Lisboa. Estava a passos largos da universidade onde o M. lecionava e, portanto, a uns minutos de conhecer mais sobre a personalidade daquele homem ou de contactar com o habitat de um verdadeiro animal da estrada. O sol ainda raiava bem alto e com um brilho nos olhos, talvez devido ao grito de revolta dos meus 28 anos, que me deram a provar o acanhado sabor a independência, avancei com o cortinado preto formado pelas linhas paralelas e simétricas do meu cabelo, acarinhado pela suave brisa. A cor da pele, a roçar o guloso caramelo, fazia-me confundir com uma turista ou uma trauseunte oriunda de terras latinas, mas o ar ansioso e as passadas firmes deitavam por terra a hipótese de ser uma mera diletante estrangeira, apaixonada pelos mistérios de Lisboa. Cheguei. Respirei fundo, coloquei a mão no interior da mala branca à tiracolo da Gola e confirmei que tinha tudo: carteira, telemóvel, chaves, estupefacientes... ups. Bem, tinha umas gomas no fundo do saco. Dei um passo em direção ao topo do degrau da porta de entrada e pousei a sola da sandália à moda dos gladiadores, castanha, com tiras e fivelas, em solo firme. "Sabe-me dizer onde é o gabinete do Professor M.?" Um porteiro negro, de óculos estranhos e postura hirta, olhava-me como se fosse um E.T. Deu-me as indicações e bati à porta, sentindo os efeitos do calor, passados despercebidos pelas calças de ganga, com gotas de suor a escorrer pelas articulações das pernas "Entre." Obedeci prontamente.

Um aroma, enjoativo e intenso, a tabaco inundou-me os orifícios nasais, de imediato, à medida que observava o caos espalhado naquela sala, como se um furacão tivesse pernoitado por lá, antes de atacar uma povoação inocente das caraíbas. Dezenas de livros espalhados, por aqui e ali, quase como se fossem frutos apodrecidos, esquecidos após a colheita. Um piano vertical, velho e murcho, estava encostado à parede direita, como se de um abat-jour dos chineses se tratasse, sem direito ao simples auto-respeito, tapado pelas camadas de pó e o peso do tempo, que quanto mais depressa flui na linha cronológica, mais cicatrizes, dor e mágoa impreme às coisas. E aquela sala estava carregada de perdição, de tristeza e desilusão que atiraram a mais bela das artes à superfície interna daquele buraco, para a transformarem em panquecas, sensaboronas e insípidas. E com um perfume de tabaco. Vislumbrei o M., curvado sobre a secretária, proporcionalmente baralhada a tudo o resto, e cumprimentei-o. "Olá." Ele levantou ligeiramente a cabeça, depois ergueu-se e apertou-me a mão, sem me fitar nos olhos. Delicadamente, ofereceu-me uma das duas cadeiras à sua frente, mas sem perder tempo. Mais uma vez, executei tudo como mandam as regras. Mas o ambiente, tão cáotico quanto genial, despertou-me a curiosidade. "Toca piano?" Um inesperado olhar assustado, tão forte e tão curto, foi atirado na minha direção. "Sim, em tempos. Noutros tempos, toquei. Quando me dava prazer, quando podia e era feliz." Uma flecha atingiu-me. Não esperava, de todo, aquela resposta e a minha tendência para querer decifrar aquele mistério aumentou exponencialmente."Que giro. E porque parou? Adoro música, é uma das minhas paixões. E também tive aulas de piano há uns anos." Alternando entre a reta final do preenchimento da maldita declaração amigável e um olhar de súplica por paz, a nossa interação tornou-se um crescendo de uma sonata, oportunamente, de piano. Começou inaudível, mas o compasso final rebentou com êxtase.

junho 09, 2012

Colisão frontal, eucaliptos e a dor da independência (III)

Saltos altos, leggings e um estilo pin up demasiado quente para a noite ventosa que se estendeu sobre a bomba de gasolina da estação de serviço.

O negrume já havia ultrapassado o meu estado de espírito. Cobria, num rompante guloso, todo o alcatrão e todos os vestígios de movimento em redor, exceção feita para as minúsculas luzes aceleradas que, paralelamente, serviam de fogo-de-artifício às nossas expressões graves. Dezenas, centenas, milhares talvez, de carros assinalavam um desfile de tubos de escape e pára-choques urbanos, rápidos como foguetes, cujo destino parecia até ser incerto para os condutores dos mesmos. Um espetáculo de luzes que se cruzavam e entrelaçavam, como se a luz pudesse ser uma opção naquela altura, em que o frio, mais do que o medo, provocava um tilintar nos pés irrequietos, a pele de galinha e uma estranha sensação de vazio. Seria o meu carro tão vital quanto um amigo, um familiar ou simplesmente uma pessoa que me faça crescer num gesto escondido pos verborreias mentais?

"Bem, está tudo tratado, mas não a deixo sozinha. O melhor mesmo é chamar um reboque...", atirava seco M. "Persistente o sacana", contei a mim própria. "Hum.... não, deixe estar, já estou perto de casa. Vou tentar ir até lá", respondi-lhe. De cigarro no canto da boca - mais um maravilhoso exclusivo num anoitecer pré-outonal -, arregalou os olhos, retirou o cigarro com o polegar e indicador destros e fez-se entender perfeitamente, ainda antes de silabar seja o que for. "É melhor chamar um reboque... o motor pode gripar e depois é bem pior, o radiador está só a deitar água. Tem a certeza que não quer um reboque?!" Nem disse muito mais. "Não." Matou o cigarro com uma só pisadela impiedosa da sua bota escura de chumbo. E atirou um "Vamos lá."

Quinze minutos depois. O pior havia acontecido e eu, no meu desespero disfarçado pela altivez feminina da minha indumentária sexy, não queria baixar a guarda. Mas o M. tinha sido O profeta. Uma espécie de adivinho das duas rodas, com a sua roupa de um preto uniforme, indiferente e desligada das modas que faziam o mundo - e o dinheiro - girar, eternamente, como dados a rebolar para a fatalidade de uma roleta num casino. "A temperatura aumentou e temos de esperar... Mas agora parece que está mesmo difícil", afirmei, com os lábios paralisados. Os olhos, redondos e castanhos, fixavam-me sem dó. "Eu bem te disse", falaram. "Pois, ok. A carteira é surda...", respondi com um risinho seco. Estava só, apenas com o meu orgulho frio e desapaixonado, numa berma de estrada. Optei por recorrer a um amiga, aquela que me ajudou a libertar-me, nos meus 28 anos.

Sim, tinha 28 anos quando a minha vida mudou. Mas ninguém disse que foi fácil, pois não? Crescer dói que se farta. "M.J.? Desculpa... Tive um acidente na A5 depois de termos estado juntas... Vens para cá? Obrigada, querida. Até já." Baixa, de pele clara, rosto arredondado e uma voz pueril, não tardeu em aparecer. Instante em que o meu Twingo parecia andar. E, subitamente, não havia motivos para ele, o meu protetor, poder ficar. Estarava tudo resolvido, bastava o seguro entrar em ação e pagar os danos materiais. Da minha parte ainda teria esse problema para resolver. Era altura de enfrentar as feras e seguir em frente, como sempre se fez e sempre se fará. Despedi-me da voz arranhada e da aventura personificada num arqueólogo, com rasgadas linhas de sarcasmo que o tornavam tão charmoso aos meus olhos de menina-mulher. Ainda não o sabia, mas o reencontro já havia sido traçado.

Colisão frontal, eucaliptos e a dor da independência (II)

Já era noite cerrada. Ainda sentia aquele arrepio que o meu sistema nervoso me tinha enviado. Devia ser uma espécie de presente de aniversário atrasado ou - visto que a bondade abunda por estas alturas - algo que fosse similar a uma oferta natalícia adiantada. Porque não, né? O M. por ali estava a acabar de preencher a declaração que eu, atabalhoadamente, não conseguira. Foi, por esses segundos arrastados, que comecei a analisar, discretamente, aquela figura, utilizando a minha timidez pueril como disfarce. Quase parecia uma criança perdida aos olhos de um mero mortal. Mas não passava de uma rapariga assustada protegida por uma vergonha cozinhada com stress, agressão e um cheiro a eucalipto que me dava comichão. Estava todo vestido de preto, como se fosse um adepto ferrenho de motas. Na realidade era um fã de motas, mas não fazia parte daquele gangue com longas barbas grisalhas, lenço na cabeça e brinco na orelha, a ganhar ferrugem há quilhénios. "Vocês que andam em carros, parecem sardinhas enlatadas", gozou, com os olhos semi-cerrados, gozando da confusão alheia. Era de outra estirpe o M. Mais baixo do que eu, com um farfalhudo cabelo grisalho com ligeiras reviravoltas nas pontas, revelava ser um autêntico pirata do tabaco, com o constante buscar de um cigarro para confortar a alma. Uma espécie de compra por impulso, com os danos colaterais de se ter uns pulmões mais negros que o pior dos mercados. Sempre com um cigarro ao canto da boca, a sua voz era forte, com um timbre de roquidão sensual. "É o que dá fumar tantos cigarros", pensei. Sem dúvida era o tom com que se dirigia e comunicava que fazia toda a diferença. Tudo o que dizia transformava-se numa interrogação, cuja resposta seria uma incógnita. Mesmo que a dêssemos, ele replicava com uma pergunta e a nossa mente, intuitivamente, respondia: "este homem é um ponto de interrogação". Nesse dia não percecionei com a devida profundidade tal caráter enigmático, mas percebi, a posteriori, que aquele senhor superava os limites da generosidade, na era esmagadora do egoísmo. Afinal protegeu-me, com notável desapego, mesmo depois de ter sido vítima de um acidente de viação. Protegeu-me. Protegeu naquela sua concha, uma armadura de aço, a agressora da sua integridade física. Como se lhe pertencesse, como se fosse um prolongamento de si mesmo.

maio 20, 2012

Colisão frontal, eucaliptos e a dor da independência

Tinha 28 anos quando a minha vida mudou. Quando finalmente mudou. E num desses dias, descarreguei finalmente o peso - aquele que havia carregado, interminavelmente, como se fizesse parte do meu corpo desde sempre e do qual me sabia livrar. Sacudia, agitava, abanava, mas mesmo que, por segundos, ele voasse para outra dimensão, não tardava em regressar a cada átomo meu, como se fosse um amante-cola, sedento de toque e de chuvinha de amor.

Não chovia naquele dia, não. Mas uma tempestade obscura reinava dentro de mim, como se tudo perto de mim colapsasse e ruísse, sem piedade. Nada parecia fluir bem, fosse onde fosse e as tensões constantes em casa faziam com que tivesse o condão de irradiar energia negativa para qualquer objeto que estivesse na minha direção. Foi o que aconteceu naquele dia. Desabafei. E conheci o M.

Os eucaliptos rodeavam o caminho da auto-estrada em direção ao mar. A minha cabeça não paráva, corroía-se de pensamentos que, à força, eu temtava organizar. Tudo isto enquanto me mantinha focada no longa reta de alcatrão diante de mim. Pára, arranca, pára, arranca. Olhar para a esquerda durante meio segundo, voltar em diante...uma mota em cima do meu capot. AI! Trava! PUM!

Um solavanco percorreu todo o meu corpo que, sacudido, num ápice, assemelhou-se a um boneco, inanimado e ausente daquela realidade onde prosperavam carros e sinais de fumo. Sinais de vida, portanto. Vi que a mota parecia estar inteira. O mesmo não se podia dizer de mim, que rebentei no instante em que percebi que os danos poderiam ser irreversíveis. E foi aí que o inesperado aconteceu.

"Está bem? Sente-se bem?". Eu não respondia, escondida pela minha vergonha e pelo meu embaraço que me engoliram a língua. Esperava agressividade, cobrança, revolta, mas em vez disso recebi generosidade, compaixão e preocupação. As lágrimas apoderaram-se de mim, mas eu vi-o. Vi um enorme coração refletido nos olhos castanhos, grandes e redondos, que irradiavam força e personalidade. "Não, não estou bem...". "Mantenha-se calma, por favor. Onde tem o seu triângulo? Acalme-se, eu trato de tudo". Disse-lhe onde, mas quis ajudar, ainda que estivesse parada no meio da A5, na faixa do meio, com carros a passar por tudo o que era sítio. Sem pensar, abri a porta e fui ter com a "vítima". Ainda que por pouco tempo, é certo. "Sem colete aqui fora?! Já para dentro." Estava a ser protegida por quem tinha levado uma valente cacetada. Bem, até faz sentido. Não fosse eu, naquele momento, magoar-me.

Uma hora depois.

O radiador estava morto. O carro andava em modo de tartaruga. Eu já não tinha as cataratas do Niagara a brotar-me dos olhos, ainda que soubesse que tinha pedido aquela situação. Estava mais calma, mas, o mais estranho era que era o outro lado que permanecia calmo. E chegados à bomba de gasolina para tratar das burocracias legais da coisa, finalmente consegui ter outra perspetiva do M. "Olha, estou atrasado, uma colega tua hoje quis conhecer-me, o que se fazer?". Sorri, finalmente.