outubro 27, 2014

Desesperadamente Procurando Nova Iorque (V)

"Don't be afraid ma'am. It won't bite you". Uma máquina giratória, de proporções gigantes e sons semelhantes a 20 despertadores juntos, estava a devorar-me os olhos. O ambiente, agitado, era um somatório de uma mixórdia de sons, cruzamentos entre vozes, passos e objetos metálicos em andamento, e de uma borrada colorida, na qual as cabeças dos viajantes pareciam mirrar a cada zig zag dado.

Descalcei-me, com alguma dificuldade. Todos os espaços e bancos, passíveis de me auxiliar nessa tarefa, pareciam ocupados com sacos, malas e máquinas fotográficas. "Just move it!", atirava a réplica nº 578 da Queen Latifah, ao fundo do corredor. Subitamente, a minha mente viajou para uma prisão norte-americana, na altura da refeição, onde a fila de espera teria sempre de ser orgânica e contínua. Sem tempos mortos. A diferença é que, no presente imediato, existiam detetores de metais em vez de cassetetes pretos, autênticas metamorfoses de uma cordilheira além da linha da terra. Uma menina, com o cabelo cor de gengibre, de tez sardanisca e olhos pestanudos mirou-me com um azul celeste. Sorri timidamente, surpreendida pela doce fixação nos meus movimentos descontinuados, à procura de um local para esperar. "Ah a eterna curiosidade das crianças". Nunca imaginei que poderia ser um dos momentos mais bonitos de sempre, o aceno de uma criança a uma desconhecida ou um gracejo redondo quando uma das minhas botas desencaixou, aflitivamente, do meu pé. E com o esvoaçar do cachecol, da boina, o deslace da alça, frouxa, nos meus cotovelos enguiçados, com os quilos de massa densa de roupa por baixo. Sem me conseguir mexer, a bebé, refastelada no seu carrinho aconchegado, sorria de lado, num esgar torcido de gozo. Duas cópias imperfeitas da bebé corriam à volta do banco, num frenesim louco, com berros, puxares de roupa e mini-maratonas infantis de Filadélfia à mistura. Os pais, disformes com os rosas e os ruivos de linhas em voo, sacudiam, arrumavam e despiam. A fila começou a avançar.

Agarrei nos pertences e meti-me em espera. O ar abafado sufocava a respiração e, por cima da tapete rolante, as caixas da plástico, desfilavam perante a plateia assustada com as possibilidade de novas tendências de pronto-a-vestir para a próxima estação. Tablets, portáteis, casacos tigresse, botas cortadas e retalhadas. De tudo um pouco se via a descoberto antes da pose, muitas vezes em mise-en-scène. Lá continuava de meias ao relento até à passagem na grande máquina. O aparelho, um detetor de metais avançado, parecia saído de um filme de sci fi realizado por James Cameron. E a minha apreensão em entrar lá dentro não passou despercebida. Depois da reprimenda, deixe-me de molenguices. Entrei e passei. Nada de metais, armas, nem lâminas se encontravam nos confins do meu vestuário casual. Desci o degrau, fugi para as minhas coisas, coloquei o cinto, calcei-me e segui para a viagem.

Porta 63. Andei às voltas pelo aeroporto, como se de um tour para dummies se tratasse. Na realidade, comparado com a Portela este espaço era gigante, com uns dez terminais, mas organizados através do alfabeto ocidental. Depois de ter encontrado o caminho certo - o oposto ao que fiz originalmente - lá apanhei um carrito e percorri os corredores como pistas de autoestrada. Estava apenas a 45 minutos da meta. Até lá... respirava fundo para não perder a calma.

outubro 13, 2014

Desesperadamente Procurando Nova Iorque (IV)

O último corredor para dezenas de quarteirões embutidos em repetição vertical parecia mais assustador e longo do que, realmente, era. Povoado seria o adjetivo, na verdade, mais adequado. Centenas de viajantes andavam, como que agrilhoados nos tornozelos, com o andar miudinho de escravos negros no deserto à procura da chave perdida. Todos em filas ziguezagueadas, à espera que o seu destino chegasse em forma de um carimbo ou quiçá meia volta. O que não era possível contestar - bem pelo contrário, tendo em conta a densidade populacional de uma sala que não devia chegar aos 100 m2 - era a falta de calor humano. Ou simplesmente de calor. Talvez fosse do ar condicionado que tinha avariado ou do congestionado trânsito, mais voraz que a IC19 sentido Lisboa-Sintra em hora de ponta, certo é que um desconforto irrespirável começou a chatear-me. Tirando o facto de conseguir ter ligado para casa - era proibido ter os telemóveis ligados naquela altura do campeonato, mas as regras foram feitas para serem quebradas - cada movimento demorava. A minha sorte é que a companhia tinha chegado. Em formas subtilmente curvas e numa língua longínqua, mas a única conhecida.

"É para aqui a fila da alfândega?". Virei-me ligeiramente para trás e foi o fim do meu aborrecimento. Devia ter um 1, 60 m, um casaco de malha cinzento e uma cascata de canudos compunham a cabeça, caindo em catadupa para os ombros. Os olhos, redondos e castanhos, eram de uma afabilidade familiar, com o sabor de um bacalhau assado e batata a murro destilado. No braço esquerdo apoiava um dossier, enquanto manuseava um smart phone branco com a mãe direita. "Sim, seja qual for o destino, tens de passar por aqui", atirei, com um misto de enfadamento e alegria. Instante passado e volvido, chegou outro, no qual a minha atenção se centrou. A A. A poucos metros de nós, precisamente na mesma fila, ei-la, com o seu grande carrapito no topo da cabeça, a mala do tamanho de um porta bagagens de um Buick e um sorriso camuflado. Alguns fãs mini miniatura aproximavam-se,  tímidos, com pedidos de fotos e autógrafos. Ela, mesmo cansada, lá acedia. "É mais bonita na televisão", dizia-me a minha companhia, cujo destino final era Seattle, no norte da costa oeste, junto à linha fronteiriça com o Canadá. Eu virei a cara e ri-me, à espera de passar despercebida. Mesmo que já fosse uma tarefa impossível. "Acho que ela já te viu", falava a voz de timbre grave, entre os caracóis húmidos.

Nunca fui boa a matemática, os números sempre me assustaram, mesmo com a calculadora como eterna auxiliar. A minha vontade, sempre que tenho uma conta astronómica à minha frente, composta por vírgulas e rabos de nove, é simplesmente de apagar e dizer 'olha, vai de férias, que eu não preciso de ti'. Ou então 'não posso simplesmente arredondar? Sou adepta da simplificação!'. Porém, aqui, nesta situação em concreto, até um ceguinho vislumbrava o óbvio: as probabilidades de me cruzar, no mesmo avião, com aquela figura pública, eram reduzidas. E simplesmente não quis saber, mesmo que todos pudessem andar atrás dela a milhares de quilómetros de distância. Cruzámo-nos incontáveis vezes, ao compasso daquele andamento, que ditava o ritmo da fila, em modo staccato ou legato. Devagarinho ou mais rápido. E nenhuma de nós trocou um olhar marcado, um gesto de cumprimento ou um olá sumido. Porque ali éramos invisíveis para quem nos conhecia, subtis sombras humanas numa mancha de cor disforme e vaga, num limbo de tempo, em terra de ninguém, chefiada pelas Queen Latifahs e reconhecida pelos tapetes que nos faziam viajar para um cubo mágico. Ali éramos duas mulheres em férias, longe das escravidões da vida. 

Um senhor de bigode e formas redondas analisou-me na passagem da Alfândega, sem uma réstia de sorriso ou informalidade. Hirto e seco, perguntou-me o que fazia eu ali. "I'm on vacation", respondi. "What do you do for a living?", atirou com os olhos cerrados na foto do meu passaporte. "I'm a journalist", esclareci, de imediato, com um sorriso ignorado. A placa de identificação dizia "Ben". E quando o carimbo roçou, com força, no papel do passaporte, o nervoso miudinho voou daquele ponto invisível e um sorriso iluminou-me. O bigode do Ben, farfalhudo com pelos castanhos, atravessou-se na linha do meu olhar, acompanhando o movimento ascendente da cabeça e eu pensei: "Ben... Ou antes, bem, vou-me embora!". E desapareci com um agradecimento mudo e umas Merrell voadoras.

setembro 30, 2014

Desesperadamente Procurando Nova Iorque (III)

Filadélfia é o caos. Quer dizer, o aeroporto. Com dificuldades em entrar na rede norte-americana de telecomunicações, estava ansiosa para comunicar com as pessoas que pensavam em mim, lá em casa. Um mar de gente dirigia-se à Alfândega, composto por misturas vindas de várias origens, de várias direções e de múltiplos aviões, à espera de aprovação para entrar em terras do tio Sam. Olhei em redor e apressei o passo.

Avistei, ao longo de metros e metros acelerados, dezenas de Queen Latifah em versão low budget, com argolas a imitar os poleiros dos papagaios mais destrambelhados e unhas de gel com desenhos de mapas. "Já me tinha esquecido do fervor afro-americano", pensei, com uma imagem do passado a bater-me, com minúcia, no lóbulo frontal. Para reforçar a eficácia da sinalética, as funcionárias estacionavam e nem a reboque arredavam pé dos centímetros laterais dos indicações. Eram maioritariamente negras e anafadas. E com uma voz potente. "You have to go this way, come on', move it!", atiravam a dezenas de cabeças, quais pontas de alfinetes, à espera da sorte grande. A saída.

Largos e eternos corredores, preconizados por abstratas alcatifas heterogéneas, numa mescla de linhas, traços e variações cromáticas, prometiam ser uma ilusão. A experiência de um, desembocava na sensação de percorrer o outro. Da primeira vez que visitei os Estados Unidos, em 2011, a energia era a mesma. Elétrica, frenética e até de alguma inflexibilidade para quem tinha acabado de aterrar. Literalmente. Desta vez, como estava sozinha, conseguia perceber certos pormenores com mais precisão.

"Nova Iorque, Nova Iorque. Para onde?", pensava à medida que fazia um esforço para não perder nada pelo caminho. Espera: casaco, mochila pequena eastpak - com cartões, passaporte, guias e bolachas XPTO -, saco da máquina fotográfica à tiracolo, o cachecol aninhado no pescoço torcido e a boina a acusar o adormecimento no chão salpicado de meias pegadas. Cada vez que focava o olhar num ponto diferente, sentia que algo deslizava do meu corpo, podendo permanecer abandonado naquela terra de ninguém. Entre uma cidade que nunca visitaria e o alvo do meu desejo de viajante, era uma espécie de limbo geográfico, do qual apenas queria escapar.

E depois de apanhar um elevador e travar uma conversa, mais gestual do que linguística, com duas portuguesas, lá encontrei. "Customs". A placa do derradeiro beco com saída, na direção da entrada. O exame final antes da licenciatura, a inversão de sentido no exame de condução, a última fase de recrutamento com entrada para a multinacional da moda. Ou como todos os geeks diriam, a última aventura, entre fogo, montanhas e gigantes, antes de conseguir destruir o anel do poder em Mordor.

maio 17, 2014

Desesperadamente Procurando Nova Iorque (II)

"Desculpe? Ah". Olhei dormente para a figura brilhante do assistente de bordo, com as suas sobrancelhas bem delineadas e um bâton do cieiro a esconder as possíveis lascas, tão perto. Senti uma fragrância forte e, talvez por isso ou por ter acabado de despertar de um sono agitado, apurei o foco para o carrinho das bebidas. "Coca-cola, por favor". um esmalte branco e polido brilhou na minha direção, o que foi mais do que suficiente para me endireitar e deixar cair o tampo nas costas da cadeira à minha frente.

À minha volta parecia que a noite tinha aterrado no avião. A A. continuava a três filas de mim, com um enorme tufo preto no topo da cabeça pendurado no lado do topo de um lugar acinzentado. As janelas alternavam, entre a negritude e a clarividência, e os ponteiros pareciam que teimavam em não avançar, embora eu estivesse perdida. Apenas era uma mancha, algures a sobrevoar o Atlântico. Uma mancha no limbo, entre dois pontos marcados no espaço, presa na linha do tempo, quase como se estivesse a atravessar um portal, onde tudo significaria mudança instantânea, adquirida e... desconhecida.

Olhei para a janela, para o conjunto de nuvens que se assemelhavam a tufos de algodão. Saltei para cima deles, como se fossem um gigante trampolim, como passaporte para as mais belas paisagens. Dei piruetas e re-voltas como se pudesse voar e cada descida era um beijo com o material, era um aparar de um golpe, tão possível e real nos dias mais comuns, um sorriso estampado nas costas ou com qualquer outra parte do corpo que chegasse ao ponto mais baixo da queda. Descansei o olhar e sorri. Agora as nuvens surgiam como baguetes e recordei as dentadas estalidas de muitas, com um "crunch" que aquecia o meu palato com novas sensações. Mesmo a tempo. "Sandes de presunto ou queijo?" Fixei o dentinhos brancos. "Presunto". E um estaladiço cremoso, variante pão de plástico, instalou-se.



abril 05, 2014

Desesperadamente procurando Nova Iorque (I)

No dia em que decidi marcar a viagem a Nova Iorque, sabia que o grau de risco era considerável. Apesar da cidade ser considerada bastante segura, não conhecia propriamente casos de mulheres que tivessem decidido viajar sozinhas para uma cidade tão grande, em busca de um não sei quê. Acalentava este sonho há alguns anos, especialmente nos últimos meses, desde que comecei a estudar representação. Tornava-se quase imperativo, na minha cabeça, ir a um local que fora (e era) uma inspiração tão duradoira para tantos artistas, realizadores e, claro, atores. Mas afinal que diabo tem Nova Iorque de tão especial para tanto dos eventos e happenings do Mundo se passarem lá?

A minha curiosidade traíu-me - pelo menos, às minhas poupançazecas - e ao bater das 12 badaladas, na passagem de ano, com 12 gomas em forma de ursinho na palma das mãos, repeti para mim mesma: "Este ano é que vou visitar Nova Iorque". Analisei, pesquisei, consultei alguns sites que relatavam o testemunho de outras mulheres que visitaram a cidade e cheguei ao veredito final. Fiz contas à vida, perdi horas entre soluções mais económicas e o acelerar de burocracias impostas pela sociedade norte-americana e voilá.

"Bling ringa. Na na na na naaaaa, na na na na na na naaaaaa, para pa para pa pa pa....". Eram seis e meia da manhã e o despertador fez questão de me brindar com a sua intransigência agridoce. O momento era aquele, o que tinha despertado bandos de borboletas em catapulta na mente, nos últimos dias, mas a noite agitada não me tinha brindado com as horas suficientes de descanso. 

O ritual da mala quase pronta, esperava por mim, depois do dia começar a nascer tristonho, sob a forma de um cinzento baixo e redondo. Depois de um duche revigorante e generoso, envolto num nevoeiro crescente, acelerei o passo, reforcei o meu corpo com uns cereais e fechei a mala, com ajuda e algumas mudanças geográficas estratégicas. As borboletas, por magia, tinham voado ou talvez morrido. Não é verdade que a duração média de vida desta adorável criatura ronda as 24 horas?

Precisamente o oposto do que se passava na minha cabeça. Uma excitação e adrenalina crescentes, mesmo com o cenário mais pobre para a recém chegada primavera portuguesa. Estava a milhares de quilómetros, mas a humidade das ruas geométricas, compostas por prédios intermináveis, cobridores do céu que nos faz sonhar, ilimitado, já pareciam uma certeza à frente dos meus olhos. 

Cheguei ao aeroporto sem sobressaltos, embora com o coração nas mãos. Uma viagem é sempre uma novidade, uma lufada de ar fresco, uma quebra na rotina que perdura, muitas vezes, há meses e anos. Das melhores dádivas da sociedade humana. Mas há sempre pessoas que deixamos, que amamos e com quem nós preocupamos. Não acredito e nunca acreditei no conceito do " desprendimento total e fundamentalista". Podemos levar a casa connosco, as imagens mais marcantes circunscritas com um arco-íris e um raiar de sol dentro de nós, mas deixamos sempre algo no sítio de onde partimos. E isso custa e magoa sempre. No mínimo, ficam memórias de pessoas com quem nos relacionamos. Se formos anti-sociais, os rostos das pessoas tão familiares que nos habituámos a ver no supermercado, as músicas e excertos de faixas que assumem papéis diferentes, por estarem associadas a específicas épocas, fases e sentimentos dos nossos fragmentos diários, o animal de estimação, que até pode ser o nosso único amigo, que aguarda sempre a nossa chegada ao lar com um olhar à bambi e uma lealdade inesgotável. Todos nós, mesmo os mais solitários, mesmo os mais frios e separados do pragmatismo da realidade, deixam algo. Parte de uma tela gigante, do tamanho do percurso da nossa vida. Mesmo que seja a preto e branco. Eu tenho pessoas que deixei e de quem vou sentir muito a falta, mas o que me magoa mais é a mágoa do outro lado. Proveniente da preocupação.

Caminhei para a fila do check-in com um sorriso e passada firme em direção ao voo 739 da United States Airways. "Senhora, é favor responder a umas questões por razões de segurança." Ah pois, já me esquecia da morosidade que é viajar para os Estados Unidos. Trezentas e milhentas perguntas depois, quando finalmente perceberam que não transportava droga, armas brancas ou de outra índole qualquer, la deixei a gigante Samsonite azul fugir na passadeira. E, passada meia hora, deixei fugir duas das pessoas mais importantes na minha vida. Sempre com um sorriso no rosto, um brilho de emoção nos olhos e um "até já" sussurrado. Agora estava por minha conta. E seja com que idade for, com 10, 20, 30 (e imagino que também aconteça aos 40), o desconhecido provoca sempre um medo, um receio, vá, que pode ser perigoso se for negligenciado. Se ignorarmos esta moínha, ela irá consumir-nos e apoderar-se de tudo o que controlamos (ou pensamos nós que assim é). Ao invés, permitir-nos sentir medo faz com que, mais cedo ou mais tarde - é uma questão de tempo - ele comece a deslizar. Perde força. 

Foi ao que fiz ao passar o controlo no aeroporto. Mesmo depois de ter sido revista e apalpada por uma jovem segurança de tez morena e sorriso desfalecido, um colega da mesma não optou pela calada. "Foi o relógio, sabe? Para a próxima... Quando tiver um relógio em aço retire. Já não apita". Ripostei com um tímido sorriso no olhar. "Pois, não fazia ideia. Obrigada." Compus a tralha e avancei para a porta de embarque em direção a Filadélfia: a escala inevitável que não tinha conseguido apagar do meu itinerário. Era isso ou uns quantos euros sugados a mais, que não me permitiriam investir noutras atividades de caráter lúdico-cultural.

E nesta caminhada interminável, em busca da Porta 42, em tudo se assimilava ao green mile, o corredor da morte. O destino parecia ser inatingível. Andava, andava, andava, em marcha rápida e parecia que já tinha dado a volta ao Mundo. Os olhares de viajantes espalhados pelo espaço remexiam-se curiosamente, num gesto minucioso de perscrução, à medida que um ligeiro sopro lhes incomodava a face no segundo em que o meu passo voava, mesmo ao lado. Para compor o cenário, algumas das lojas faziam querer abrandar-me, para regozijo da minha faceta mais materialista: fnac, Desigual, Victoria's Secret... Consultei os ponteiros do relógio. "Está na hora do embarque. Mexe-te rapariga." Deixei as lojas, com generosidade, para os viajantes desocupados e, no mínimo, com generosidade na carteira. E voei para um último interrogatório, no qual passei com nota 20. Acho que posso dizê-lo, visto que respondi negativamente a todas as questões de ameaça de segurança e tive tempo para repousar as órbitas num banco. Embora a minha vista fugisse para o avião, do outro lado da vidraça, e para alguns passageiros a metros de mim. 

"Don't treat on me." Li inscrito numa mala verde, como a dos militares nos filmes americanos, às costas de um rapaz de ar aquilino e olhar vago. Tinha cabelo curto loiro, olhos azuis, daquele tom felino-siamês, e a mente bem longe dali. Embora o porte atlético e a indumentária sugerisse um possível militar ou um aspirante a tal, também pelo emblema da bandeira norte-americana cosida à mochila. Patriótico, sem dúvida. Outro senhor, sentado a três cadeiras de mim, de semblante largo e pasta preta à executivo - no interior da qual podemos imaginar resmas e maços de dólares ou dezenas de sacos de droga de qualidade duvidosa - olhava em frente, composto pelo blazer preto que se tinha pendurado no braço e a caneta brilhante encaixada, tão desvincadamente, no bolso da camisa.

"First class passengers...". Começou a corrida, mas era fraca. Pareceu-me que pouca gente ia estar no avião e, de facto, não falhei. O meu lugar era à janela, mas os outros dois também. Ia viajar realmente sozinha durante sete horas e quarenta minutos. E, quando analisei a composição geral, percebi que esta seria mesmo a pintura. O que eu não esperava, de facto, é que nas minhas férias além fronteiras e atlânticas, desse de caras com uma figura pública no avião. A A. entrou com a sua figura, alta e sensual, suscitando logo uns suspiros e zunzuns. Até o assistente de bordo, que não deve ser o maior fã, distribuiu um baralho de sorrisos, tal como a diplomacia do trabalho exige. "Quer vir aqui para a frente? Fica melhor." A morena não fez questão, mas acabou por aceitar a proposta. E lá estava ela, a três filas de mim, com companhia e descansada da vida. Mal sabia que eu estava ali, de semblante sério, com a minha boina e cachecol roxo. Mas também era indiferente, não fazia questão de mudar o meu comportamento, por muitas estrelinhas que caíssem no avião. A ironia era gigante, mas não se comparava à minha vontade de usufruir cada segundo fora do mundinho tuga. Respirei fundo, olhei para a luz que entrava pela retangular janela e pensei, quase deixando sair som: "É uma passageira como outra qualquer. Férias. Nova Iorque." E sorri.

Ainda não eram onze e meia e já estavam a servir paparoca, a bem dizer um frango barbecue com feijão verde e puré de batata doce (uma perdição gastronómica que me tem perseguido em cada refeição). Um dos assistentes de bordo, com uma careca muito brilhante, e uns olhos azuis metálicos lembrava-me o líder da Companhia da série Prison Break. A voz era pouco límpida e, aparentemente, a simpatia também estava perra. Perguntou-me o que queria e eu contra-respondi com "Que opções é que tem?". Silêncio. Acabei por pedir frango e deliciar-me, também calada, todavia com motivos diferentes: uma lata de coca-cola zero num copo com uma pedrinha de gelo, uma fatia de bolo de chocolate, uma vista para o atlântico que me lembrava a maresia gélida de Porto Côvo e o filme de animação Frozen, a confortar os revirares de olhares mais desconfiados. Apercebi-me de que já era oficial: ainda agora tinha partido e já me sentia em casa.

abril 03, 2014

Desesperadamente procurando Nova Iorque (prefácio)

Toda a gente sabe que uma mulher normal dos dias de hoje - pelo menos aquela que é considerada como tal, sempre com muitas aspas, aspas - gosta de prezar e cuidar da sua imagem. Um ritual que, nos casos mais extremos, morosos e dolorosos, pode chegar a algumas horas diárias. Eu tomei várias resoluções e defini algumas regras antes de embarcar nesta viagem a Nova Iorque. Entre elas, não cair no ridículo de carregar todos os acessórios femininos tão desnecessários ( já para não falar pesados). Contas feitas, as minhas decisões foram:

1. Não levar secadores, alisadores, escovas XXL para efeitos de remover células capilares mortas e enterradas, levantar raízes ou fixar ondas XPTO, nem qualquer aparelho eletrónico relacionado com o visual e a estética. Todo o ano somos "escravas" da beleza. São as olheiras, as rugas, as imperfeições, as borbulhas e acne pós-30, o cabelo que não está esticado, nem com o volume perfeito. As unhas que estão ao natural e, pronto, não pode ser. Não fica bem, certo? Oi? Errado. Vou de viagem para conhecer, absorver, respirar novas sensações, emoções. Não para uma competição de moda. Quando me quiser pavonear com o kit completo vou para o Chiado ou para a Avenida da Liberdade. Agora é tempo de ser o mais natural possível. Limpinha, mas sem grandes arranjos. Observar e não ser observada.
2. Não demorar mais do que cinco minutos para tratar da imagem: maquilhagem, penteados, cremes para o rosto e ramificações afins. Para quê perder tempo com mais, do que com os mínimos olímpicos, se o objetivo é passar despercebida entre a multidão? Sentir-me confortável, bem preparada para horas de caminhada e passeio, não se coaduna com quinquelharias e adereços froux froux. Se não gostarem, olhem para o lado. Melhor será, é mais tempo que passo a observar a natureza de quem passa por mim e de tudo o que acontece no momento. Menos distrações.
3. Não me levantar nunca depois das sete e meia da manhã. Se vou para a cidade que nunca dorme não posso ficar na cama ou sentada à janela de casa a ver os táxis amarelos a passar. Para conhecer o ritmo biológico da cidade, tenho de o acompanhar, desde a sua génese. E quanto mais cedo, melhor. Mais experiencio.
4. As deambulações na rua não podem ser tardias, mas não há hora de recolher obrigatória. Se me apetecer ficar na conversa com a minha anfitriã ou a escrever ou a meditar, fá-lo-ei sem me penitenciar por isso. Estou de férias e a vontade que surgir de fazer algo nos " tempos livres" será aceite.
5. Não há regras. Fora todos os motivos já mencionados e descritos, a livre exploração de um espaço, rua ou recôndito recém-descoberto será sempre uma tarefa a abraçar, ainda que não tivesse sido premeditada ou prevista. Não faz mal, o inesperado e a aventura são amigos do viajante, mas inimigos do turista. Eu considero-me um mix, pois irei aos locais mais icónicos da Big Apple, não poderei deixar de ir ao topo do Empire State Building ou ao Strawberry Fields no Central Park, mas também quero ver o resto. Tudo o que está fora dos cartazes e catálogos de agência porque não é bonito aos nossos olhos, tão ligados com a categoria perfeição. Não é bonito de se ver, logo não é comercial, nem vende. Mas faz parte da natureza do local, é também o que o caracteriza e, como tudo na vida, tem de ser levado com seriedade e respeito. Quero ver tudo. Ser uma viajante numa ordem de urgência, em busca de tudo o que conseguir ver. Insaciável, em corrida pelo autocarro que já está ao virar da esquina, apinhado com pessoas perdidas, mercadorias com cheiro a século XIX e galinhas anorécticas e semi-depenadas. Quero entrar e arquivar na minha cabeça tudo o que puder.

Posto isto, deixo-vos estas palavras com a intenção de transmitir quaisquer eventualidades no decurso desta viagem, de uma semana, entre três e dez de abril. Sete dias apenas, nada de invulgar na linha cronológica, nem de inovador na era do tempo fugaz e conectado em rede, com o Mundo inteiro. O olhar sobre as experiências no decurso do mesmo é que é subjetivo e único. Não por ser especial, nem mais rico ou completo do que outro qualquer. É apenas o meu. Que será certamente diferente de todos os olhos, cada par com as suas ligações, percepções e curto-circuitos.

Até já, Nova Iorque.