dezembro 18, 2006

Pensamentos paralelos

Todos nós temos medo. Em algum ponto da nossa vida, olhamos para trás e apercebemo-nos que não há pessoas imunes ao risco e ao perigo. Tal como não há cobardes a tempo inteiro. Isso é uma ilusão. Temos medo de quê? Eu acho que temos medo de falhar, medo de não mostrar o que somos, de ficar aquém das expectativas que criámos em relação a alguma coisa ou a alguém. Quanto temos um objectivo em vista e não o alcançamos, tudo se torna numa enorme desilusão e não sabemos para nos virar..Provavelmente esta é a minha forma de agir e lidar com as coisas. Tenho em mente o que quero e tento perseguir, às vezes, coisas que não podem ser perseguidas. Mas, mesmo assim, nada me impede de as perseguir à mesma. É assustador às vezes. E com esse "atirar de cabeça" vem também a desilusão. Nada é o que parece. A realidade, a concretização dos factos no dia-a-dia, a objectividade da vida..é muito diferente, na maior parte dos casos, daquilo que tanto imaginámos.
Dia-a-dia imagino coisas, sinto coisas que me fazem perceber que sou a pessoa mais exigente que se pode encontrar num raio de vários quilómetros quadrados. É presunção a mais, podem dizer. Secalhar. Mas não há ninguém, para além de mim, que possa avaliar bem o que penso e sinto. E foi por ter sentido medo nos últimos tempos que decidi desenvolver esta....instrospecção. Para manter os pés bem assentens e não cometer loucuras..sem ponderar as consequências.

novembro 19, 2006

Sozinha na Caixinha Mágica

Que sono. Não imaginam a "porrada" de sono que tenho, ainda, para mais, porque estou no local de trabalho sem fazer nada.
Desde que cheguei à Redacção que cresci bastante. Comecei a olhar para as pessoas e para a vida de uma forma diferente, apesar de não mudar as minhas mais profundas convicções em relação às coisas que me rodeiam, de forma geral. Não percebo, apesar deste crescimento positivo, como é que o mundo pode ser tão cruel e tão cão. Secalhar sou eu que sou demasiado nova e não sei porra nenhuma da vida. Ou secalhar sou apenas esquisofrénica e não consiga mostrar, realmente, a plenitude do meu ser por ser deveras complexo. E talvez seja por isso que me sinto tão incompreendida. Ou talvez esteja rodeada, no momento, de um bando de abutres, que só pensa no seu bel prazer e passa o dia em sites porno. Sinceramente, não sei dizer ou explicar..
Como qualquer ave de rapina, procuram alimentar-se da vida dos outros. São carnívoros, vorazes e não deixam escapar qualquer oportunidade de mostrar a sua infinita indisponibilidade para assuntos que não lhe interessem abordar. Ou seja, tudo o que sair deles mesmos. A verdade, para mim, é esta. Mas é a verdade com a qual tenho de lidar diariamente, mesmo que seja desagradável. O homem do século XXI é egoísta, por natureza. Pensa nele próprio, acima de tudo e não se importa de espezinhar os sentimentos alheios, se fôr necessário. Admito. Às vezes é necessário. Ou seja, é um mal necessário, com o qual não concordo e não gosto, mas que tem de prevalecer, em algumas vezes. Noutras - a maioria - é apenas teimosia e afirmação. Nada mais.
No estado sonâmbulo em que me encontro, todas as sensações estão à flôr da pele. Tento manter a calma e um sorriso - sincero - no rosto mas distancio-me de tudo e todos. Como é que posso não o fazer se passo horas, tempos mortos e mais que mortos, estática, à frente de um ecrân de computador que insiste em me fritar os olhos? Todos estão no seu pc, no seu mundo, mesmo que comuniquem de forma não verbal. Aliás, a comunicação verbal pouca força tem, e expressão efectiva, em comparação com a comunicação não verbal. Parece estranho mas é verdade. Já tiveram aquela sensação que alguém diz alguma coisa, mas sem qualquer convicção? Como se estivesse a mentir a si próprio e ao mundo..As nossas crenças acabam por nos entalar. Por muito que se diga uma coisa, se não se acredita nela..isso traduz-se nos gestos, na postura, no olhar, no tom de voz. E é quase impossível de disfarçarmos essas lacunas aos olhos dos outros que são observadores natos. Sim, os seres humanos estudam os outros, passam a vida a fazê-lo. E por isso aprendem e crescem..Mas o que mais fazem é juízos de valor dos outros. Porque estudam um olhar e numa fracção de segundo apercebem-se do que aquela certa e determinada pessoa pode estar a pensar. E por mais absurdo que pareça, as probabilidades de acertar são mais que muitas, porque avaliamos alguém que é nosso semelhante, alguém que, como nós, é ser humano, um ser vivo inteligente, com ideias e atitudes. Mesmo que pouco vigentes ou reais. Nem aqueles que são apelidados de fracos, escapam a esta ideologia. Todos têm personalidade e modo de estar. Se não são ninguém, acabam por sê-lo por não serem ninguém. Confuso?
Há dias em que dou por mim a pensar nos "ses". É a chamada tortura existencial. Pensar no que a nossa vida seria, ou teria sido, se optassemos por "x" ou por "y", não nos traz mais felicidade ou melhora as coisas. Mas ganhamos imaginação. Construímos enredos e voamos pelo mundo. Se, em vez de voltar para Portugal, tivesse ficado a dormir na minha cama king size do JW Marriott, no Cairo, quem é que eu seria agora? Tornar-me-ia numa mulher infeliz, de cara tapada a viver debaixo da ponte? Talvez. Casaria com um árabe de raízes ocidentais, num bairro abstado da zona de heliópolis? Seria possível. As pessoas passam a vida a dizer-me "Fdx, só fazes filmes, não faças filmes". Imaginar e sonhar talvez seja um crime neste mundo tão rápido e exigente, no qual pensar é uma barreira à prosperidade do homem na sociedade moderna e vertiginosa. Ou seja, hoje já não há espaço ou tempo para pensar, para reflectir. É acordar, trabalhar o máximo, viver ao máximo, foder ao máximo, procriar e não refilar muito no final de tudo, porquie já tivemos o nosso papel na terra. Mas pensar é essencial e faz falta. Se penso em tudo o que não seria, imaginem só e vejam. Talvez se penso no que não sou, é porque realmente sei quem sou. Agora. Amanhã posso tornar-me numa mulher casada e ter gémeos. Nunca sei o amanhã. E se, por um lado, gosto de dominar a minha vida, ser independente, indomável, teimosa e orgulhosa. Por outro, sigo os meus instintos com lealdade e procuro o imprevisível, o arriscado. Mas apenas e sempre só. E, talvez por isso, faça os filmes da minha vida, procurando um papel principal. Algo perto disso, pelo menos. L.

novembro 13, 2006

Vidas atribuladas

Toda a gente que me conhece minimanente, sabe que eu não páro quieta um segundo. Nem que seja por dentro, na minha mente. E aborreço-me facilmente. Por isso tenho sempre que engendrar esquemas para me distrair e divertir que é, acima de tudo, o mais importante nesta fugaz vida. Sem diversão e prazer, sem um belo esforço recompensado, as coisas tornam-se muito mais difíceis de viver e ser ultrapassadas, talvez porque perdem a graça ou o sabor. De que me vale passar a vida aborrecida, de cara de vela apagada e corpo de goma? Sei que era mais fácil ser simples e resignada. "Ah e tal..isto é muito mau e tal, mas é a vida". Mas como não sou uma portuguesa típica nesse sentido, portantoss, paciência.

Vim do México, do calor, da praia, das bebidas, das conversas com os empregados de hotel, da absorção da cultura e só me consegui chatear. Cheguei a Portugal e voltou tudo ao mesmo. E desde que comecei o estágio, muita coisa mudou. Do dia para a noite fiquei sem namorado, sem vida social, sem tempo. Digo-vos, foi melhor assim. Não me sentia feliz, era como correr atrás de algo que desejasse muito e estivesse sempre a cair e a tropeçar. De seguida levantava-me de novo, mas por muito que quisesse, já não conseguia correr tanto e da mesma forma..destemida. Os meus sentidos já estavam desconfiados e mantinham-se alerta para qualquer possível acidente de percurso. Corri e caí que me fartei. Não aguentei mais manter uma relação que não existia. E libertei-me. E o trabalho distraíu-me.

Abri os horizontes do olhar, da mente e corri em direcção aos objectivos que comecei a conhecer no dia-a-dia. Cresci, morri, renasci. É tão mais fácil procurar a aventura e os desafios do que ficar à espera que ela nos caía, que a obra do destino nos seja favorável e nos dê novas oportunidades. Infelizmente - ou não - as coisas não funcionam assim. Não sei bem o que acabei de dizer, mas apeteceu-me e fez-me bem..O stress faz mal, meus amigos. Não se deixem levar por ele e arrisquem-se sempre a questionar as coisas. Parece de doidos..Parecendo que não, ajuda (Brunito, tamos contigo pá..). Hasta la victoria siempre. L.

outubro 06, 2006

A vida num segundo (II)

O comboio estava a chegar. Não sabia quanto, mas estava realmente atrasada. Furou as pessoas inertes que miravam as janelas fumadas do trem e procurou uma escapatória possível daquela realidade, realmente, desagradável. Escapando daquela cárcere quotidiana, enfiou-se naquela ilha que a levaria à sua vida académica. "É outra prisão". Raquel observava aqueles seres, escondida nos seus fios de cabelo, espalhados pelos ombros firmes. Protegida, debaixo dos cabelos lisos castanhos, os olhos rasgados de tez de avelã perscrutavam os pensamentos daqueles desconhecidos que a assombravam. "É uma prisão mas uma boa prisão, que nos esconde, nos protege da vida lá fora", pensou, quando conseguiu ver um pedaço do mar através da janela de vidro baça.
De pé, os livros pesavam nos braços e o casaco no corpo. Raquel olhava a luz, a vida, enquanto os decibéis lhe entravam pelos ouvidos a dentro, proporcionando-lhe sentimentos ricos e confusos. De phones pretos, nos ouvidos, a rapariga dos "Puma" azuis levava nos olhos vivos, a tenacidade de quem procura uma descoberta após descoberta. Naquele pré-momento de canetas, papéis e atenção redobrada atrás de uma secretária, Raquel vivia na terra, com pensamentos dispersos nas emoções que sentia.

setembro 02, 2006

Miss, Tequila e Gajos..

Entrei. Filas e filas de cadeiras vazias. Um palco ao fundo e muitas luzes que ofuscam a vista. Não percebi o que se passava mas vi 3 rapazes aos pulos no palco, com energia para dar e vender, sempre dispostos para a acção. Avancei pronta para alguma emoção. Sentei-me na 2ª fila, cruzei as pernas e ouvi "Vamos elejer la Miss Palladium!!"..
Percebi, num ápice, do que se tratava, sem qualquer sombra de dúvidas e pensei "Só espero que não me chamem para ali.."..Muitas das pessoas que me conhecem, acham que sou só extroversão..mas é a mentira completa. Apesar das minhas loucuras, em certas situações o meu lado mais tímido domina a situação e impede-me de realizar nas perfeição todas as coisas que sei que poderia realizar..
"Tuuu!".. Um rapaz moreno, de cabelo espetado, magro e de estilo desportivo, puxou-me para o palco como se não houvesse mais hipóteses. Disse que não e não. Mas fui puxada e como tava ali sozinha e para me divertir, pensei: "Que se lixe..".
Segundo a segundo, o público aumentava, mais pessoas chegavam e em cima do placo, com as luzes a ofuscar-me a vista, não me apercebia de nada do que se passava diante de mim mesma. Éramos 5 concorrentes, com provas a fazer. Desde passar um elástico o maior número de vezes num minuto, representar comédia, fazer animais com balões e até beijar todo os homens que nos aparecessem à frente (na cara claro, não quero cá confusões..). O público elegeria a vencedora. Raúl, o "chico" que me buscou da plateira, piscava-me o olho e dizia "Eres ja la vencedora, vas a ganar.." Eu limitava-me a rir..Na prova do elástico fui um desastre, na do balão nem se fala, na do teatro (diverti toda a gente) e no dos homens..well. beijei 22 homens num minuto. Record. O público, perante cada candidata, ia tomar "a" decisão e eleger a vencedora. Como? É simples. Basta aplaudir cada uma delas. A vencedora é a que receber mais aplausos. Meninos, não faço ideia se recebi mesmo mais aplausos. Só sei que ganhei o concurso, diverti-ma à brava e trouxe para o quarto, no final da noite, uma garrafa de tequila..
"Ya lo sabia..sabes porque? Porque tienes chispa.." Regressei ao meu lugar da 2ª fila e não tarda nada, Raúl chegava e perguntava-me tudo de mim. Tinha uma sensualidade inata no corpo, uma vida no olhar e um interesse..Em saber o que estava uma portuguesa, comprometida, a fazer ali, sozinha, no meio do México. Falámos e mais tarde, na aula de Merengue, dada por ele, que fazia parte da animação, lá fui eu. Puxada por um assistente. Raúl estabeleceu quem seria par de quem. Formou os pares e fiquei para o fim. Disse "Y claro..yo me quedo con portugal..". Lá fui eu, mais uma vez, para a frente do palco, atirada para uma prova forte de tentação e de descoberta.. A mim foi incumbida a tarefa de executar os passos que Raúl, tinha a atenção das pessoas todas e isso punha-me nervosa. Depois executávamos a dança ao som de um ritmo bem caliente e os nossos corpos colavam-se. Um olhar penetrante e eu ficava a pensar que diabo se estaria a passar entre mim e ele, nuns míseros dois minutos. Nada de mais, apenas um latino, com toda a perícia e arte, que me tentava seduzir..
No fim da noite fui convidada para ir à maior discoteca da Playa del Carmen..Ao ar livre, com várias pistas de dança..Os vários animadores insistiram..mas para não cair em tentação e em imoralidades, deixei-me associar ao cansanço que sentia e marchei directamente para o meu quarto, com a consciência limpa, feliz..e uma garrafa de bebida na mão..

agosto 28, 2006

Sentada no paraíso

Em Valladolid pouco vi. Acabei por estacionar numa loja, super mega grande. Havia de tudo, desde uma mercearia em que um pacote de Cheetos custava 3 pesos (note-se que não é o mesmo que 3 euros), até um espaço gigante, cheio de esculturas e coisas artesanais. Perdi-me no meio de tanta coisa e sabia que já não ia ter muitas mais oportunidades para gastar uns cobres, por isso aventurei-me e larguei os cordões à bolsa. O vendedor tinha muita sabedoria, sabia o que dizer para me fazer comprar, mas acabei por comprar várias coisas aos poucos, regateando sempre. Dasse, vocês sabem lá a confusão que é, converter as moedas e perceber se devo pedir um preço mais baixo ou não.
Enquanto os meus camaradas se passearam, encafuei-me ali, só tendo tempo para tirar uma foto na praça central (tal como havia em Mérida e noutras cidades coloniais). "Chula", disse David, o motorista. Interroguei-o e ele disse "guapa". Sorri e corri para a carrinha de vidros fumados, procurando um refúgio.
Riviera Maya. Era esse o próximo destino e o destino final do circuito. Agora era altura de curtir a praia, beber uns copos e disfrutar calmamente do paraíso magnânime que me era oferecido. Cada casal ia para um hotel diferente. No meu caso, o Kantenah não era escolha exclusiva. Para lá iam também mais dois casais. Adivinhem quem..Provavelmente não. A espanhola com ar de miúda. Bingo. Ah e outro casal..
Despedi-me dos demais e lá fui eu..Mal sabia o que me ia acontecer..4734. Era este o meu quarto, a minha gruta durante os dois dias seguintes, até voltar à dura realidade.
Mal cheguei reparei no exotismo que rodeava o cenário. A selva pura, as aves, o calor húmido. O verde predominava, a flora era riquíssima e o hall de entrada do hotel parecia muito magnífico. Talvez não tenha escrito como queria, mas n sei como descrever melhor o que se passava. Era de uma beleza sem fim, cheia de requintes e extravagância. Um chão brilhante que reluzia, uma panóplia de empregados de chapéu de côco, sempre prestáveis. O bar era do lado esquerdo, feito do seu balcão comprido e copos brilhantes. A recepção, do outro lado, acolhia os recém-chegados. Ao centro um combinado de mesas, sofás fofos e um mini lago com repuxo e peixes. O espaço era semi aberto, sem paredes, dando abertura para a paisagem selvagem.
Cheguei ao quarto e maravilhei-me com tanta..com tanta..err..grandeza. Cama King Size, ar condicionado, mini bar cheio, pinturas da Frida Kahlo na parede..Ya, coisas dessas. Aperaltei-me e, já fresquinha, fui explorar o hotel. O Complexo tinha 4 hotéis ao todo: Kantenah, Colonial, Riviera e White Sands. Todos faziam parte do Palladium (o hotel geral, digamos..). Passeei e percebi que o hotel era mesmo..grande..demasiado grande e que não haveria tempo para conhecer todas as iguarias.
Decidi ir jantar. Se tivesse mais tempo e memória, descrevia tudo ao pormenor. Mas como são coisas que não tenho neste momento - para além da paciência - só vos posso dizer que o buffet era rodeado de um lago cheio de peixes laranjas, todo envidraçado. Enchíamos o estômago e regalávamos a vista. Passei o espírito por aquele espaço, mesmo sem encher o estômago, tentando captar a essência humana daquele espaço. Muitos americanos - gordos, na grande maioria - e alguns japoneses. Portugueses, nem vê-los. Uma variedade de comida infindável decorava cada esquina e cada pormenor: peixe, carne, fritos, grelhados, fruta, entre outros e tal.
21:30. Sabia que ia haver um espectáculo e fui para o teatro. Só não sabia que ia ser para eleger a Miss Palladium....

agosto 26, 2006

Dos Maias aos Espanhóis

Depois de vistas as ruínas em Uxmal, o calor apertava e a vontade de uma fresquinha coca-cola e um pratinho de frango aromático bem que crescia e fazia crescer água na boca. Almoçámos ali perto, apesar de já nem me lembrar onde - vejam só como anda a minha memória - e seguimos para Mérida, uma bonita cidade colonial, símbolo da vinda dos espanhóis à Nova América e ao México, um misto de raças e indígenas. (Ah, já me lembrei..almoçámos na Hacienda Uxmal, o sítio onde tinha ficado a dormir, debaixo do tecto de palha..como é que eu não me lembrava..)
Mérida. Abri os olhos, ensonada, quando chegámos à parte industrial da cidade, com fábricas e armazéns. A cidade foi fundada pelos espanhóis, esses malditos cabrões que fizeram questão de invadir toda e qualquer terra da América Latina (tou a brincar obviamente..eu até gosto de espanhóis..). No século XVI, dotados de armas, espadas e uma ambição de meter medo ao susto, os espanhóis expulsaram os Maias e construíram uma cidade com a típica praça central que há em tantas outras cidades coloniais. Por lhes lembrar a famosa cidade de Mérida em Espanha, baptizaram a nova povoação com esse nome e assim ficou.
Carros, pessoas, movimento. Parecia que estava finalmente a sair da selva, com os seus ramos destroçados pelos furiosos furacões e os gigantescos arvoredos que nos pareciam proteger do céu instável. Depois de passarmos a zona industrial, entrámos no centro da cidade, em ruas que estavam organizadas numericamente. O nosso destino era o Holiday Inn. Depois estávamos livres para fazer o que quiséssemos. Já eram quase quatro horas e o calor tornava o nosso corpo peganhento. As altas temperaturas no interior da Península de Yucatán mexiam connosco, excitavam as mentes e davam-nos uma fúria de viver inabalável. Deve ter sido por isso que uma semana no México não me chegou..
Passámos por ruas estreitas, sinais de trânsito amarelas e carripanas velhas de caixa aberta. Ninguém nos podia ver realmente, por causa dos vidros fumados, o que nos dava o poder de observar tudo ao pormenor sem sermos minimamente descobertos. Sempre gostei de ser uma observadora compulsiva. Olhar obsessivamente para as coisas à minha volta para perceber melhor o que se passava, como tudo funcionava. E ali, numa situação particular, em que estou num mundo completamente novo, com uma cultura inteira para ser descoberta, mais intensa era essa vontade em mim, que me despertava muita adrenalina. A pobreza era notável, mas nada que me causasse uma séria repugna. Pelo contrário, tinha respeito por aquelas pessoas que, apesar de serem exploradas, tinham que sobreviver e tentar ir mais longe para ter tudo o que necessitavam ter. Não é uma questão de ambição, mas pouco mais do que sobrevivência. Viver condignamente, como toda a gente. As casas tinham cores berrantes e os cães, ossudos e desnutridos, passeavam-se sem rumo.
Chegámos ao hotel. Combinei com os espanhóis irmos ao centro da cidade, à famosa Calle 60 para as lojas que vendiam as coisas castiças da região. Optei por apreciar a cama fofa de lençois brancos e ver alguma televisão. Seinfeld. Fechei um pouco os olhos, tirei fotos e, mais tarde, desci. Fartámo-nos de andar, durante horas. Fizemos compras e fiquei a saber que os Mexicanos eram todos simpáticos porque eu era muito "guapa". Vejam lá ahaha..Discurso de um vendedor..Devia ver se me convencia a comprar mais coisas da loja dele..Bebi uma piña colada na esplanada, no meio de uma conversa que não consegui descodificar sobre tapas e tal..Entrei muda e saí calada..
Noite. Chuva. Acabei por jantar sem companhia no buffet do hotel, vendo a chuva cair, esperando adormecer para que um novo dia pudesse surgir.
08/07/06
Abalámos e não tive a oportunidade de me despedir dos três espanhóis que iam a Palenque. Recordei a última vez que os tinha visto. Foi na esplanda ao pé da praça central. Nunca mais os vi e tive pena.
Era o último dia do circuito. Íamos a um cenote tomar banho, neste caso o cenote Ikkil, perto de Chichen Itzá. Os cenotes eram os poços de água, fenómenos naturais de entre a natureza que permitia aos Maias fazer um sem número de coisas como tomar banho, retirar água para satisfazer necessidades naturais..O lugar era idílico com uma água azul escura e profunda, onde peixes grandes e pretos se destacavam. Como se fosse um poço, tinha uma forma circular com vegetação a toda a volta, com pequenas borboletas que dançavam por ali e umas ligeiras quedas de água refrescavam os olhos.
Tirar fotos, ficar de bikini e ala atirar-se para a água, que se faz tarde..Atirei-me para a água passado um bocado a tentar habituar-me à temperatura da água..Americanos, japoneses e outros tantos andavam por ali, de sorrisinho rasgado e máquinas à prova de água. "Es flia?"..Er, um pouco..Depois daquele paraíso tropical, onde nadei até não poder mais, sequei-me e comprei uns souvenirs. De seguida fomos almoçar todos a um restaurante, onde já mais liberta, dei a conhecer aquela faceta tão espontânea que acaba por assustar tanta gente...Procurei iguanas mas fugiam..Tirámos uma foto de família e fomos para Valladolid. Infelizmente, não pude ver muito..Meia hora dentro de uma loja..Isto diz-vos muito? Pois, a mim também não.

agosto 08, 2006

Uxmal e luzes nostálgicas

Saímos de Chichen Itzá e percorremos mais um belo pedaço do caloroso México, sempre com aquela ânsia de conhecer algo de novo. O almoço tinha sido bastante satisfatório, com muita massa, arroz e uns frijoles de chorar e querer mais (não que eu goste de chorar mas pronto. Na verdade, não gosto mesmo..mas às vezes é inevitável..e porque carga de água é que estou a falar disto?).
Um afável papagaio cruzou-se no meu caminho, aliás eu é que me cruzei com ele, e senti aquelas penas coloridas, de um verde vivo a trespassar as camadas adiposas da minha pele - hum, um misto de poesia com discrição anatómica - com uma suavidade que me fazia esquecer, por instantese, a correria atarefada que teria de fazer até chegar à carrinha branca número treze, de vidros fumados e ar condicionado intenso. "Heyyyy". Ups, já me esqueci que tinha de ir. Lá fomos, com o César, de careca brilhante e intensos bravos peludos, de um branco lixívia, juntamente com David, o cheínho motorista de aparência anafadita e indígena, com os meus mega hits musicais, que colocava no leitor de cd's enquanto não chegássemos ao destino seguinte. Entrámos na carrinha e, sentinho um chumbo de razoáveis dimensões a pesar-me nos gémeos, semicerrei os olhos, deixando de ver as sombras coloridas das borboletas que pintavam os céus, ao som de um monte de anedotas sobre "el matrimonio" e os piris-piris de uma vida convencional. Uff..Siesta time.
Provavelmente demorámos pouco mais de uma hora e meia até chegar a Uxmal, outra unidade de ruínas arqueológicas, das mais antigas e conhecidas do México, com o seu quadrado Templos das Monjas e as iguanas gigantes que habitavam perto de galhos gigantes de árvores amazónicas. Ficámos alojados numa espécie de cabanas, pequenas casas de alpendre e cadeirão de madeira à porta, - como, aliás, pude constatar existir em grande número na sociedade cubana - no meio de um espaço verde quase selvático, ladeado de uma piscina pouco tratada de água coberta de ervas e restos naturais - que, sinceramente, nem me esforcei muito em tentar saber o quê -. Cada casa, mini vivenda, tinha dois quartos e no seu interior, uma enorme casa de banho - a maior que já tinha encontrado desde que tinha chegado a México, dotada, inclusivé, de uma fabulosa hidromassagem.
Lembro-me de chegar a quarto por volta das cinco da tarde, pousar as coisas, ligar a tv e deitar-me na cama fofa, especada a observar as actrizes louras da "Heridas de Amor". Observava as tragédias de um mulher que, apesar de querer ser missionária, se debatia com um sentimento de amor que a invadia. E como se não bastasse, o dito cujo parecia ser um sem escrúpulos da pior espécie, envolvido em actividades ilícitas que afastavam a bela senhora do seu caminho. Amores e desamores, tragédias, traições, ahhh..O dramaaaa. Bem, mas isto agora não interessa nada. Passemos ao essencial e que acabei por não contar no meio dos meus relatos imensos e confusos que não facilitam nada a comunicação. Olhava para a televisão mas já não a via, já não sabia ver o que estava por detrás daquelas imagens ou daquelas falas, e mesmo ouvindo o que eles diziam, apenas ouvia algo de muito difuso. Já tinha descolado do México e aterrado na minha casa, sentia-me lá, movia-me no meio da minha vida indefinida, sem saber o rumo. A bússola estava avariada e os instintos são enganadores. Não estava bem. Fechei os olhos e decidi esquecer o que me afligia, quis esquecer-te, descansar o corpo e escapar de mim mesma enquanto podia, antes de sair para as grandes luzes ofuscas e difusas.
Tomei banho, arrumei-me e perdi-me. Cheguei 5 minutos atrasada à entrada das ruínas e isso fez-me ter que perguntar pelo guia e pelo grupo de espanhóis que acompanhava. Lá os encontrei e sentei-me, meio fechada e isolada, à espera do espectáculo que em breve nos assombraria os olhos e a mente. Uma longa descrição narrada num espanhol fechado, onde o deus Chac, o deus da chuva, adorado pelo povo Maia, era imensamente referido, acompanhava a chuva de luzes que nos era apresentado, mesmo diante dos nossos olhos. Durante uma hora, acompanhei esse movimento, de máquina fotográfica na mão e pensamento longínquo, tentava não persistir com estas ideias que me feriam e colocavam numa ilha, roeada por um mar gelado, sem qualquer possibilidade de salvação possível.
Jantar. Ao ar livre, apenas com um telhado de palha, um som dado por três mariachis e caras sérias e insdispostas. A sério, podem não acreditar mas dei por mim a pensar "Dasse, que treta de espanhóis que não sabem apreciar uma bela refeição de boémia e esboçar um mero sorriso encantador." Saí do jantar directamete para o me quarto, já que no meio do nada, não poderia haver nada para fazer. Pensei, pensei e pensei. Adormeci, vencida pelo cansaço (antes disso tinha tirado umas fotos, memórias visuais é que coisa nunca me vai faltar..e um vídeo, mas não o consegui enviar e tal..blá, blá, blá..lá estou eu..).
07/08/06
Levantei-me cedo, arrumei as tralhas e dirigi-me ao tecto de palho ara comer o pequeno almoço. Desta vez fiquei com o casalinho do sul de Espanha, a tal rapariga de sorriso infantil e cabelo pintado, que me chamou nos seu oculinhos fragéis. Conversei, falei do meu estágio na televisão e, no meio de um sono perdido, seguimos para Kabal, umas mdestas ruínas, com grandes incrustações do deus da chuva, o já referido Chac. Fotos, passeios e preocupações. A beleza não tinha fim mas assim continuei no meio de nenhures e segui para Uxmal, o lugar já visto na noite anterior, com luzes e efeitos sonoros. Perdi-me naquele calor, observei tudo com menos atenção, dolorida com a picada do chili na minha mão (ainda passámos por uma casa maia e, ao provar uma tortilha mexicana com chili, deixei escorrer picante para a minha mão. Lavei-a mas, curiosamente, isso não bastou. Pelos vistos, o chili não pica só na boca mas em tudo o que toca..). Felizmente, os primeiros socorros eram eficientes e uma pomadinha resolveu o problema...

agosto 01, 2006

More..

Chichen Itzá. Chegámos a um hotel no meio do arvoredo e da selva, muito próximo da zona arqueológica que data do século IX D.C. Caraças..tou-me a tentar lembrar do nome do hotel..humm... Ah ya, Maya Village..Penso que era isso. O calor era húmido e forte, abrasador, que nos punha logo a carne a arder. Queria-me distrair da derrota portuguesa, por isso, deixei as coisas no quarto e fui à loja do hotel ver os "souvenirs". O hotel parecia uma antiga mansão, com uma escadaria enorme, quadros na parede e bancos de madeira. Era imponente e espaçoso, com uma bela esplanada entre os riscos verdes da natureza, entre arvoredos que nos abraçavam.
Saí do hotel à procura da ouriversaria que me tinha sido indicada pela empregada gordinha da loja. No caminho passei por um bar com tv e vi relances do jogo de Portugal, que estava a passar em modo diferido num qualquer canal mexicano. Virei a cara e segui até à loja. Cá fora, tava um rapaz sentado, moreno, de cabelo liso e óculos graduados, que protegiam uns enormes olhos castanhos. Era o empregado. Entrei para a loja, mas acabei por ficar a falar muito com ele. Economia, cultural, política. Tudo e mais alguma coisa. Horas. Ups, é tarde. Tomar banho é obrigatório..
Jantar. Fresca e leve, não tinha vontade de comer. O calor matava-me. Apesar de ter saído do duche à pouco, - duche esse que tinha sido bastante desagradável, já que a água não escoava pelo cano, formando-se uma piscina de água castanha encardida - já transpirava de novo. Dirigi-me de novo à loja e debatemos a situação do México. Ele não tinha clientes para atender e eu não tinha os espanhóis para chatear. A vontade de falar e conhecer era enorme e decidir por os radares a "funceminar". Passado uma hora, despedimo-nos e fui-me. Acabei por ser convidada para juntar-me à mesa dos Bascos e, após um grupo de mariachis me dedicar umas músicas naquele ambiente lúgubre, discutimos Cuba e a política de Fidel.
Segui para a cama, desejosa de descanso..Não antes sem ver um pouco de televisão mexicana e constatar num programa desportivo, que nós nunca tínhamos sido os favoritos dos especialistas futebolísticos daquele país..

06/07/06
Despertar cedo. Desta vez comi com a família que tinha a filha. Melancia, papaia, café com leite e uns croissants miniaturas tiraram a minha barriga de misérios. Apesar de alguma dificuldade, ainda, em comunicar, já se notava mais fluídez nas conversas, mais sorrisos e uma espontaneidade que advinha da convivência de já algumas longas horas, contínuas e sem escape imaginário.
Saímos para visitar as ruínas, durante mais de três horas, com muito calor, sol e suor. Apesar de o guia procurar sempre sombrar para expôr as suas explicações, os espanholitos lá iam pondo um protector, bebendo água ou procurando um calhau algures, para se confortarem. Às vezes tinha que se fazer sacrifício humano e ficar ao sol, como lagartos. Compras, regatear, mais ruínas. O cansaço tomava conta de mim e eu precisava seriamente de me sentar..
Almoço. Saímos de Chichen Itzá e fomos almoçar à povoação. Era um hotel, com um buffet razoável para nós. Comi um pouco de tudo, bebi uma bela cola e diverti-me com o papagaio que se encontrava na gaiola (ou seria uma arara?). Aproximava-se de mim e inclinava a cabeça. Dava-lhe festinhas e e as suas penas se eriçavam..Calor, calor e mais calor.
Próximo destino: Uxmal..Querem saber onde?

julho 26, 2006

Continuação..

(Venho por este meio informar o meu infeliz lapso de redacção do último post. Não era dia 3 que queria dizer, mas dia 4, já que o dia 3 tinha sido o dia da minha partida de Lisboa, tal e qual como tinha publicado. Puf, não há motivo para complicar as coisas.)
Vim de Cancún já era tarde. Tinha passado um bom bocado a passear pelo Mercado 28 - uma espécie de medina de rua mexicana que tinha pechinchas de todos os tamanhos e feitios -, a falar com "la gente". Para além de pôr umas belas tranças tipo bandlete, ainda falei com alguns vendedores, perguntei-lhes sobre a sua visão em relação aos americanos (e, de forma não surpreedente, constatei que estes não eram lá muito bem amados), troquei dinheiro e, claro, mostrei uns "pantallones" únicos nas suas vidas caribenhas.
O sol estava-se a pôr, o céu estava a ser invadido por raios rosa e apressei-me, entre um plano de uma novela qualquer e o ar gélido do ar condicionado, escolhendo a roupa para o jantar, sentindo já um ardor no corpo, do sol escaldante daquela manhã. Talvez por estar com um ar fresco, limpo e de olhinho pintado, tenha suscitado mais atenções do que devia. Frustrada por não conseguir mandar um simples sms à minha cara-metade em Portugal, passava todo o tempo de caminhada a mexer com o lélé, parando apenas quando os limites da minha paciência eram ultrapassados pelas inúmeras "barras" que levei do centro de mensagens em pleno México. Um fulano, metido à bessa, em simples tanga começou a falar comigo. Sabia que eu era portuguesa, não faço ideia como e já estava a querer o braço em cima de mim. Era um idiota chapado, dos maiores que vocês podem imaginar, como nas novelas, em que há sempre aquele gajo que tem muito palavreado, enrola a língua de uma maneira e fala de tal forma teatralizada, de olho esbugalhado e mão solta, que não dá para enganar. Qualquer mulher, burra ou inteligente, percebe o que é que ele quer e o que não quer. Quer sexo e não quer levar uma tampa. Livrei-me dele e fui ter com a Azucena, que já estava a trabalhar. Falei com ela, durante uns minutos bons e fui comer. Depois, um belo sexo na praia (ahahah, era só a bebida) e fiquei sempre com a minha amiga mexicana. Falámos durante horas, o restaurante fechou e depois tirámos umas foto. Para mais tarde recordar (que cliché, yah).
Quis ir à disco mas não aguentei, o longo parlapié que tive nessa noite fez-me querer dormir, até porque no dia a seguir iria sair para o circuito às 7 da manhã. Já não me lembro muito bem, mas acho que simplesmente me enfiei na cama e fechei os olhos, esperando não me cair nenhuma iguana nos pensamentos.
04/07/06
Rise and Shine. Depois de desarrumar uma mala que foi feita quase à pancada, como voltar a meter tudo lá dentro e fechá-la? Com paciência, calma e alguma organização. Comi, voltei, despedi-me e lá levei a mala para junto da recepção. Daí a pouco iria ver a espanhola do dia anterior que me mostrou esse sorriso infantil e esperei até que o guia, um homem semi calvo, de cabelos brancos, com mais de 60, de sorriso afável e divertido, chamado César.
Éramos um grupo de 12 pessoas, vários casais e uma família com uma filha, de cerca de 16 anos. Dois dos casais estavam em lua de mel, eu era a única portuguesa e todos os outros espanhóis. Foi mais um curso intensivo de espanhol que me fez enriquecer, linguisticamente. Fomos a Tulum, Coba, almoçámos e depois partimos para Chichen Itzé. Foi o dia do jogo de Portugal com a França, por isso não há muito mais a dizer. Interrogava toda a gente sobre o jog enquanto me encontrava no meio da selva. Na realidade, o meu coração naquele dia deu uma breve escapela a Portugal, pensando nos nossos craques a brincar com a bola na relva. Infelizmente, as belas fintas não chegaram. Sem golos, não há vitórias. Esteve um calor insuportável, escorria por todos os lados. Ao almoço caíu uma carga de água, proporcional à tristeza que sentia por Portugal estar já a perder por uma bola a zero. "Até parece que D. Pedro adivinhou.."..
Naquele dia, só queria esquecer o mundial e entregar-me a um belo prato de comida e uma fresca coca-cola. Algo que até veio a acontecer..

julho 25, 2006

Viagem mexida e Mexicana II

Perdi-me na imensidão do Oasis Cancún, sozinha, no meio de um bando de americanos à beira da piscina que ignoravam, por certo, a minha nacionalidade. Aliás, muitos deles nem deviam ter ouvido falar de Portugal. Deambulei pela área, depois de ter deixado as coisas no quarto e acabei por jantar no "Tatish", acabando por falar com Azucena, a flor mexicana. "Hola. Estas sola? Pasa." Ela recebia as pessoas que iam jantar, na sua roupa informal: uma camisa branco com um grande colarinho, uma saia preta que dava pelo joelho com uma ligeira racha atrás e as sandálias meio envernizadas, pretas, de ponta fina e bicuda, podendo-se ver a curva do pé atrás e os collants finos, pretos, onde a cor da pele não dava grandes sinais. Fiquei ali com ela, falei, cheguei mesmo a ajudá-la a traduzir coisas em inglês que ela não entendia e surpreendi-me com o trabalho de campo que estava a elaborar, perseguindo aquele trabalho hoteleiro que, infelizmente, muitos dos mexicanos se viam obrigados a fazer devido aos miseráveis salários que, no caso de serem o mínimo nacional, não ultrapassam os 3 euros e meio por dia. Era notável a leveza no rosto dela cada vez que uma família de americanos passava, dizendo sempre um "Hola" sorridente, encaminhando toda a gente, de pé, à porta do edifício, simplesmente esperando o que tinha, mas que não queria ter de, esperar.
Jantei e voltei. Os empregados eram de uma simpatia extrema e era fácil iniciar qualquer assunto com eles. Geralmente brincava com o facto de Portugal ter ganho ao México no mundial..Eles, na maior parte das vezes, riam-se mas não sei se achavam lá muita graça..
Continuando (que hoje estou sem muita apciência para isto), bebi umas bebidas e depois fui dormir. Aleluia. Tinha vista para a lagoa, do outro lado. O mar pareceu-me agitado mas a água era de um azul turquesa, muito forte que quase fere a vista e isso é mais digno que muita coisa que nos pode até agradar, eventualmente. Talvez por ser tão belo e tão agitado, ao mesmo tempo, nos capte ainda mais os sentidos. É como se o mar ganhasse vida por si mesmo e transmitisse uma força que, mesmo perdida, encontra-se algures na alma humana.
Dormi ao som da televisão que transmitia novelas como "Heridas de Amor" e "Verdade Oculta". Regojizei o espírito e enterrei-me na minha cama King Size, até o cansaço me vencer e partir para a escuridão.
03/07/06
6:30. Acordei cedo, fui comer uns ovos mexidos com bacon ao "Tatish" e reparei nos pratos dos meus vizinhos, cheios, cheios. "Impressionante", pensei. Como é que aquela gente consegue comer tanto de manhã? Doces, crepes, ovos mexidos, panquecas, bacon, carne frita, chocolate derretido..mais o café da manhã, mais a fruta, mais uns bocados de tarte e sobremesa. Limitei-me a comer o que me apetecia e abalei.
Dei um mergulho na piscina porque apesar de ser muito cedo, a pele estalava quase quando o sol lhe embatia directamente. Refresquei-me e fui falar com o gorducho, o representante da "TravelPlan" que me tinha pedido para ter com ele nesse dia. Estavam lá mais uns casais e percebi que iam ser algumas das pessoas que iriam fazer o circuito comigo, que começaria no dia a seguir. Uma moça de óculos de aro fino, cabelo meio palha de aço com madeixas louras e um sorriso infantil, virou para mim os seus olhos, sempre numa espécie de simpatia constrangedora. "Simpática". Depois desse episódio, segui para ir buscar a minha toalha e fui para a praia, deitando-me debaixo de um chapéu de palha, a ver a imensidão marítima caribenha que surgia diante de mim, lendo, refastelando e escutando as peripécias de uma família mexicano que, ao meu lado, discutiam por causa de um bébé de 5 meses que não paráva de berrar e, aparentemente, afugentar os turistas mais mesquinhos. Ainda bem. Não queremos cá esquisitinhos. Ide para as vossas casas, ter a vossa vida perfeita, com os bibelots limpinhos e depois logo se vê. Decidi ir à água, desafiar as leias da natureza, quando na verdade elas acabaram quase por me afogar. Desprevenida, a dada altura, levei com uma onda muito forte na cabeça que me fez cair e estar debaixo de água uns segundos. Não que isso faça mal, não senhora, é nestas alturas que nos apercebemos que as ondas realmente só têm mesmo grande utilidade para os surfistas e tal. Mas assustei-me e saí do mar, aflita e com tosse. Sentei-me na areia, à espera, então, que a água me lambesse os pés, refrescando-me. E aí passei a minha manhã. Almoçando posteriormente, com as minhas calças brasileiras que fizeram um sucesso desgraçado por todo o hotel e, mais tarde, até na povoação de Cancún. Sabem o que é ter todas as mulheres a olhar para as vossas pernas? Pois..é que por mais estranho que parece, o único interesse delas era as calças e enquanto andava sozinha no centro de Cancún, depois de ter apanhado a carrera R-2, que corria toda a zona hoteleira e turística, ouvia comentários como "Oh, I like her pants!" e "Que pantalones bonitos!" e "Hey, guapa, adonde compraste tus pantalones?" que me fizeram questionar a minha vida profissional, pensando seriamente em fazer a comercialização daquelas calças esburacadas pelo centro de Cancún. Ao menos sei que ficava rica - ou talvez riquíssima - em três tempos. Ah pois é.

julho 14, 2006

Viagem mexida e Mexicana

" Tás com medo?.."
Não. Respondia eu, com voz meio sumida, com um tremer interior que não podia dar a conhecer qualquer sinal de fraqueza.
Uma viagem de aventura é sempre sinal de coragem mas também de risco e aqueles que não tem noção do que podem passar ou desconhecem o conceito de risco, são os chamados inconscientes. É preciso ter medo para o poder enfrentar, senão é escusado e inútil. Claro que tinha algum medo. Ir para o México não era o mesmo que ir à mercearia em baixo e, dado isso, tentei gerir esse receio com a minha grande vontade de explorar aquele território. Por esse motivo, mesmo que tivesse alguma insegurança, ela seria suplantada pela energia que uma viagem de rumo incerto me dá e sempre deu. É verdade. É aquela adrenalina a correr pelo corpo. Ir assim para longe, sozinha, incerta, numa película sem guião estabelecido, para conhecer, viver, experienciar, provar sabores que aqui estão longe de ser avaliados. Esse risco, apesar de bastante medido, existia e contribuía para a minha empolgante vontade de passar mais de 9 horas num avião, atravessando todo o atlântico.
Passei um dia à volta da mala azul, enchendo-a com tops, com merdinhas de mulher que ocupam sempre demasiado espaço. Desta vez não levei pensos higiénicos, não foi preciso ahaha..E mesmo imersa na excitação do desconhecido, o meu coração murchava, se quedava assim triste e choroso, espelhando no meu olhar essa dúvida interior. Queria ir e não queria. Como te adoro...Como poderia deixar o meu amor aqui uma semana, sozinho e partir para o outro lado do mundo? Da mesma forma que a euforia vinha, era logo substituída por algo mais macabro e eu parava, frente à mala, a olhar para o vazio, para as letras geométricas de um top qualquer. A vida é curta. Carpem Diem. Toca a embalar o material e não se pensa mais nisso.
Despedi-me da minha vida, da minha casa, das minhas recordações que nunca me deixarão, do que sou e do que não quero ser e, fechando os olhos na direcção de um repouso temporário, parti para uma nova e curta etapa, uma espécie de entrada na Alice do País das Maravilhas, só que com uma grande e imponente iguana de pele descaída, em vez de um coelho fofinho e brilhante. Wow, que imagem..
03/07/06
12:00. O check In tinha sido rápido, a despedida familiar também. Para sorte dos meus pecados encontrei uma senhora muito faladora perto da porta de embarque e uma companhia certa para aquela que seria a mais longa viagem que alguma vez teria feito num avião. "A nossa viagem até Cancún durará 9 horas e 15 minutos." Ah Great. Olhei à minha volta e só vi casalinhos de aliança brilhante, mas com umas caras muito sérias, demasiado sérias para quem iria gozar uma bela lua de mel nas Caraíbas (pelo menos a maioria deles ia). Havia demasiados lugares livres e perguntei-me porque diabo tinha sido tão complicado marcar a merda da viagem. Com os lugares que sobravam ainda podiam ir umas dezenas de pessoas e eu, com mais dois lugares varios, podia fazer uma caminha e dormir alegremente a qualquer altura da minha viagem. Felizmente, a M. F. predispôs-se a fazer de mãe adoptiva e estive toda a viagem em amena cavaqueira com ela, com o devido espaço dedicado aos comes, bebes e liquefezes (belo neologismo este), tendo como banda sonora os filmes "Os Três Duques" e "O Quarteto Fantástico". Ainda vi um pouco do primeiro, mas depois cansei-me de estar ali parada. Convenhamos que 9 horas dentro de um avião é muito tempo, demasiado tempo para estarmos sentadas e a refeição servida não ajuda. É uma bela trampa. O mais engraçado é que passado uma hora de viagem, servem o tal almoço e depois so voltam a dar uma refeição ligeira com um pão cheio de um chouriço ranhoso que cheirava mal, quase quando chegamos ao destino. Ai White, coloured by you..Ya ya..Se ao menos me tivessem dado os lápis de cor ou de cera..Mas assim, continua tuudoooo muito cinzento. Ups. Sorry. Não quero fazer publicidade negativa à White. Aliás, tirando o problema da comida (que é um problema e uma realidade em todas as companhias aéreas) a White presta um bom serviço ao cliente.
Depois de umas turbulências e de uns desabafos pessoais, chegámos. Aí mais gente meteu a mão à cabeça quando percebeu que ia sozinha e já dizia uma moça de Guimarães: "É de baloor." Sorri, tirei a tralha e avancei. Ao cruzar-me com o ar vindo lá fora, senti um queimar espalhar-se por todo o corpo. Era quase como se estivesse a caminhar para a entrada de um grande forno, não com uma temperatura muito elevada. Estariam cerca de 33ª graus centígrados, que teriam, na realidade, como efeito real, mais de 40 graus no nosso corpo. A humidade era muita e senti as primeiras gotas a deslizar nas minhas costas enquanto caminhava, stressada, para o controlo alfandegário. Perdi-me dos meus amigos e fiquei ali, junto de portugueses e americanos, esperando que a fila avançasse. Felizmente, a minha vez chegou e um mexicano de fato acastanhado e pele escura inspecciona o meu passaporte, olhando de seguida para mim. "Vienes sola?"..A resposta é óbvia. "Pobrecita..Te van a robar!" Txéé..Ó man, começas bem, começas!! Limitei-me a sorrir e a dizer descontraidamente "Nooooo". O jovem lá trocou uns risitos e deixou-me ir. Abalei para a zona dos tapetes, esperando a minha mala pequena azul. Não havia sinais da M.F. apesar de eu olhar, procurando um mínimo sinal de protecção antes de me lançar por completo às feras. Completo esse processo, cada um foi p seu lado e descobri que daquele avião era a única a ir para o hotel Oasis Cancun, a única portuguesa ali, a única que ali estava. Explorei o hotel, tirei fotos, perdi-me na sua imensidade e à noite, depois de jantar criei laços com os emrpegados do buffet "Tatish", lugar onde ia tomar as minhas refeições, nomeadamente com uma morena de 21 anos chamada Azucena. Como ela dizia, é uma flor.

junho 24, 2006

A vida num segundo

Corria, num frenesim espaçado, à procura do destino a poucos palmos de si mesma. Arfava, transpirava, sentia os lábios ressequidos e a frescura do perfume a evaporar-se pelo ar pesado e urbano. Um tremor nas pernas compridas dificultava a rapidez do compasso que queria imprimir na sua corrida: um fuga de si mesmo e em direcção a um tempo que não parava, apenas lhe escapava. Subiu as escadas, respirou fundo, soltou a farfalhuda cabeleira aromática e, em passo seguro, avançou para a sombra.

Cinzento. Insalúbre. Tinha sido aquele dia veraneante em Lisboa, feito de decisões que afectariam muita coisa para Raquel. Tinha chegado, finalmente, o dia do exame final de música, o dia decisivo que ditaria o final daquele longo percurso. Não saberia o que ia acontecer, sabia que não podia com o ar abafado que lhe afagava a nuca, a humidade que escorria do cabelo preso era contínua e as faces rosadas assinalavam algum compromisso que não poderia esconder. Afinal, o problema não era só saber como ia sair dali, dos espaços que guardavam séculos de música e os fazia perpetuar; era também, e sobretudo, saber se iria passar a um exame pior que esse.
Sentada numa cadeira rija e desconfortável, de uma estrutura básica, Raquel perdeu-se em pensamentos. Perdeu-se e às notas rítmicas também.
"Oh filha, pam pammm, pam pam, pan-pan-pan, pam! Vá lá, repete de novo desde este compasso até ao final. Tempo por tempo! Força!"
"Ok..Respirar fundo..Ai ai ai.."
Não via as notas, não via tempos, não sentia música naquele pedaço de folha amarelado. Só viu um rosto, duas faíscas na sua direcção e um tremor indescretível que não a abandonou desde esse dia, o dia em que trocara conhecimento com ele, através de um simples olhar, no comboio. A medo, mas com aparente segurança, ergueu a cabeça e marcando o compasso, leu em voz firme e elevada, o ritmo que faltava. Silêncio. Glup. Não conseguia encarar o júri, aquele olhos já não a viam mas indiciavam a saída, a saída para os despojos da ansiedade.
"Ok. Espera lá fora, certo?"
"Err..Claro, claro."
Saíu da sala de paredes caiadas e poeiras dançantes. Sentava-se, levantava-se, roía as unhas, procurava coisas para observar e distrair-se, falava com todos os que passavam, esfregava as mãos pelo cabelo árido, mas nada disso a entretia realmente. Aquele momento era o pior, sempre o tinha sido e se chumbasse de novo, não iria insistir em voltar a trepar aquela parede. "Kaput. Desisto disto." Decidida, sentou-se, absorta em pensamentos leves e deixou-se transportar, deixando de ver as estantes antigas, a mesa de madeira maciça ou as partituras amarelas e velhas. Semicerrou as pálpebras num sinal de distante nostalgia e aterrou naqueles olhos, naqueles pilares que a chamaram, infinitamente, durante pouco mais de dez minutos. Queria desviar, soltar-se, mas não conseguia, os seus olhos colaram-se aos dele e saltaram para a sua alma, ele fazia amor com os olhos, num olhar aveludado, numa fixação que ela nunca sentira. Perdeu-o nesse dia, porém, reencontrou-o.
"Raquel, filha, dá para o 10.."
Acordou. Não ouviu nada e mirou a Professora materna com ar interrogativo.
"Passaste!"
Uff..Um alívio sobre forma de expiração ouviu-se na sala. Raquel sorriu e partiu, numa desenfreada procura para sair dali para fora. Sair dali para fora e colmatar com as dúvidas dissonantes que ecoavam na sua cabeça.
Nas suas calças de ganga cinzentas e top branco, voou dali para fora e procurou o sítio onde ele trabalhava. Não conseguiu resistir ao mais forte, àquela sensação mista de loucura e desejo que a consumia e procurou, procurou sinais do passado que a pudessem alimentar até à noite. Apesar da ausência dele, observou todos os cantos, todos os acontecimentos e detalhes que se seguiram ao primeiro contacto no comboio, um forte embate frontal, a pouco mais de um metro de distância. Ali tinha sido o ponto do reencontro, do reconhecimento, o sítio em que se viram e chocaram inúmeras vezes, sempre na procura do outro, de um sorriso, de uma palavra. E nesse limite espacial e temporal, Raquel perdeu-se, rendida a um sentimento que se via impedida de dominar, enclausurada numa divisão entre quatro paredes, sem porta e com uma única janela para o mar. Dali não conseguia sair, apenas vislumbrar algo de infinito e belo, uma linha sem fim que queria puxar para si e seguir, seguir, seguir..
Os olhos brilhavam, a troca de palavras na caixa elevou Raquel às nuvens e a persistência dos pensamentos pecaminosos levou-a a dar ao rapaz do comboio o que de mais útil um homem poderia querer ter: o seu número de telefone.
.......To be continued......... (lol)

junho 02, 2006

Definições Abstractas e Aleatórias..

" Seguramente, certamente que a noite da passada 6ª feira foi inesquecível.."
"..Tens a certeza?"
"Sim.."
"Humm.."

Insegurança.

É deste conceito que resolvi falar hoje, dar a minha opinião ou introspecção - aliás, é complicado eu ter uma opinião realmente formada sobre um conceito tão vago como a insegurança..-, tendo em conta vários factores.
Primeiro passo: dicionário de português da Porto Editora, o grande ícone do materal escolar, especialmente nas ofuscas memórias do ensino primário, leccionado por uma velhota qualquer com miopía. Vendo a definição de "Insegurança", lê-se:
1. falta de segurança;
2. situação em que alguém se sente ameaçado ou se encontra exposto a um perigo;
3.atitude de quem sente falta de confiança em si próprio;
4.inquietação.

Afinal de contas..porque é que as pessoas têm insegurança? Em que circunstâncias? Há causas? É legítimo? Plausível? Sim e não. Todos somos tão diferentes, temos formas tão distintas de ver as coisas, que é impossível dar certezas, explicá-las, fundamentá-las como se fossem verdades universais..até porque elas não existem. O que damos como certo e adquirido hoje, amanhã já pode não o ser e, num instante, perdemos as nossas bases, as nossas raízes, sinto-me tentada até a dizer que perdemos as nossas forças, porque a origem dos nossos valores e das nossas crenças vai por terra. (Quase) Completamente. Como é que isso acontece? Não sei mesmo. Mas acontece, sem justificação aparente. Em segundos, muita coisa pode mudar no nosso interior. Perdoem-me as almas mais cépticas e incrédulas mas é um facto. Deus é minha testemunha..ou Alá. O que lhe quiserem chamar..
A insegurança surge quando não sabemos no que nos metemos, quando o terreno é perigoso e movediço, quando as nossas acções, mesmo pensadas, planeadas e feitas com margem de manobra para quaisquer imprevistos, não são suficientes para dominarmos o contexto pessoal e social. Perante os outros, deixamos de dominar, de ter certezas, de agir como se a nossa palavra fosse a última a ser cumprida e as palavras as cobaias dos nossos próximos passos. Não, nada disso, meus caros. Quando estamos de papo cheio, somos os maióres, ya, pois somos. Muita bons e tal, sabemos sempre o que queremos, onde, como e com quem..Ya. Mas quando as coisas não correm assim tão bem, ou quando nos relacionamos com algo relativamente imprevisível, é melhor ponderarmos todas as situações possíveis de se concretizar, senão a coisa é capaz de não correr lá muito bem para o nosso lado.
Geralmente, acaba até por ser completamente diferente do que se tinha imaginado. Ya, uma pessoa sonha e sonha, tem planos, ideias, imaginação, faz tudo para conseguir algo. Pior: iludimo-nos, formamos uma impressão de algo ou alguma coisa que não corresponde à realidade e de repente..zás. Badapum. Perante uma repetição sucessiva deste fenómeno, é mais que normal e natural recuarmos perante certas sombras que surgem nas nossas vidas, sem sabermos muito bem o porquê. Eu diria mais, muito mais. Não sei ao certo porque é que sinto tanta coisa diferente num espaço de tempo tão curto. Vou ser sincera. É uma merda. MERDA. MERDA. MERDA. Sejam sempre coerentes, não recuem perante o que têm como objectivo na vossa mente. Se têm uma única ideia, seguim-na. Fixe, ainda bem para vocês. Se têm muitas..Ups. Como se escolhe apenas uma ideia a seguir de entre tantas? Profissão ou amor? Independência ou família? Loucura ou depressão? Todas as ideias são legítimas. Às vezes, é mais fácil percorrer um caminho único, sem ter que se escolher algo, porque, já dizia Sartres (ou talvez não), escolher é o que é realmente de difícil de se fazer na liberdade humana. O homem livre, por ser livre, tem de fazer as suas escolhas e responsabilizar-se por elas, assumir uma posição, liderar o caminho. A figura e criatura escravas não têm quaisquer liberdades, regalias, possibilidades de saber que podem fazer o que querem no dia a seguir, e, talvez por isso, é mais fácil percorrer esse caminho, porque nunca permanecem na dúvida irredutível de ter que fazer uma escolha. Não são livres, não têm qualquer tipo de acesso para esse caminho. Ser livre é único, intransponível, inagualável, porque ao fim e ao cabo, sou dona do meu nariz, sempre serei e sempre quererei ser mesmo quando não tenho qualquer possibilidade para o ser. Odeio pôr as coisas nestes termos. Mas tem de ser.

" Para tudo na vida, correr, é necessário haver um equilíbrio: uma coesão, a junção dos dois lados, o que nos define. "

junho 01, 2006

19/05/2006 - 27/05/2006 - 01/06/2006

"Não te queres sentar ali?..Tá frio.."
Estive ausente, a tratar da minha vida. Desculpem lá qualquer coisa, mas há prioridades..e o blog, aliás, estar sentada à frente do pc num longo exercício de regorgitação dos meus mais inconscientes problemas, não fazia parte da lista. Mas, confesso...tive saudades disto. Se o meio de expressão por excelência poderá ser a comunicação oral, e minha também, a escrita transporta-nos para pensamentos para além do imediato. Aliás, muitas vezes a escrever sai-nos coisas, de uma forma imediata, que de efémeras ou superficiais nada têm. E é por esse motivo que escrevo, escrevo como se não houvesse amanhã, escrevo para aliviar a alma quando uma mera conversa ou interação física, não consegue compreender os diversos tópicos do cerne da questão. E é por isso que voltei hoje. E porquê? Perguntam-se vocês..
Nas últimas semanas, passei de uma simples rapariga da cidade a uma campónia das montanhas, de faces rosadinhas, pernas elásticas, sorriso pregado e coração, feito de pulinhos, ao peito. Não vos sei explicar o porquê disto ter acontecido, e acho que também não iria querer dizê-lo. "Man..it's personal..". Só vos posso dizer que numa noite fria lisboeta tudo mudou, as minhas certezas da vida modificaram-se por completo e os meus desejos de esperança concretizaram-se.
Não entendo como podemos, do dia para a noite, perder o controlo absoluto das coisas, quase como se fossemos marionetas das nossas escolhas, ou das coisas que acotecem com naturalidade sem puderem realmente ser escolhas - são o que têm e devem ser - e sem nada podermos fazer para manipular as nossas emoções. É assim que me sinto agora, totalmente fora de tudo e de todos, incapaz de controlar o mais básico, de ter mão no que sinto ou deixo de sentir. É como se algo tivesse tomado conta de mim e pensasse por mim, como se eu deixasse de ser quem era, e me transformasse em algo que não consigo definir. É bom e arrojado e louco, mas também é totalmente imprevisível e instável. Será essa a melhor definição para o amor? O amor dá cabo de mim, mexe, remexe e lembra-me coisas do passado, atira-me possibilidades para o futuro e deslumbra-me num presente que nada mais é do que isso. Não liguem, estou completamente "duracell", escrevo que nem uma louca, tentando acompanhar os milhentos raciocínios que surgem na minha mente mas é complicado, é complicado perceber as questões todas que queria entender sobre a vida, sobre as pessoas, sobre os sentimentos, sobre as traições, sobre o intransponível e o incontrolável. Queria estudar isso tudo e penetrar nas mentes verdadeiras das pessoas, mas não o posso, e na realidade secalhar nem o queria fazer, contudo, queria definir o estado de espírito do mundo globalizado que vivemos: o mundo com as pipocas doce, os cinemas Lusomundo, os Mac's espalhados e os iPods, um mundo do qual também faço parte e que muitas vezes penso que não seja necessariamente o melhor, um mundo confuso e grande. Em suma, uma merda de mundo às vezes, um mundo fabuloso, nas outras. Um mundo de informação manipulada, de emoções aos kilos e ganância às toneladas.
Sinto-me irredutível e exigente comigo mesma, não consigo deixar de pensar que podia ter feito muito mais por mim, que nunca fiz grande coisa, que apenas me deixei levar por um ritmo natural das coisas que nunca exigiu um grande esforço para além do mínimo. O tal esforço praticado e feito pela maioria das pessoas que vive nesta esfera "estandardizada", era bom sentir-me útil, preencher lacunas, voar, tentar mudar alguma coisa, abdicar dos meus sonhos de infância em que varro desejos, medos, paixões e loucuras em cima de um palco com cortina vermelha e, com toda a modéstia e possibilidades que tenho, arrancar para a simplicidade da realidade. Não que essa simplicidade não seja bela e poderosa, é muito..e cada vez mais o sinto, mas como viver resignada a uma simplicidade que, apesar de glamourosa, é injusta? Uma simplicidade onde milhares - digamos antes, milhões - morrem à fome, não têm casa, não têm vida, não têm amor, não têm ninguém! Isto ocorro-me todos os dias, todos os dias em que entro no metro e vejo um pedinte, cada vez vejo que me lembro dos olhos transparentes de crianças sujas e imundas que preecnhiam os baldios situados no Rio Nilo. E depois, só penso assim: "Foda-se, que merda de egoísta me saí."
A violências às vezes, para nos afectar, tem que nos tomar primeiro.
L.

maio 14, 2006

"Vodka, Fitas e Chop Chop"

" Nirwana??.."
Original of the species.
Que fim de semana. Recordações, vaidade e farra. A mistura ideal para quem sofre de desejos crónicos não consumidos..ou seja, eu. É bom desejar, querer coisas com muito ênfase, digamos e quanto mais depressa consumirmos coisas, quanto mais depressa as temos, mais as absorvemos, mas menos as saboreamos. É a chamada febre da loucura e não se pára. Quanto mais se dorme, mais se quer dormir; quanto mais se bebe, mais nos apetece beber; quanto mais dançamos numa pista cheia de gays, mais nos apetece rodopiar, com uma data de luzes vidradas a bater nas nossas pupilas e uma música ensurdecedora, a faísca que anuncia a fronteira para um mundo nostálgico.
Voltei a encontrar as minhas únicas amigas que fiz na faculdade. Secalhar até fiz mais amigas, pessoas com quem possa, realmente, contar e falar, sem ter que levar com certas e determinadas represálias inesperadas. Mas aquelas duas raparigas foram as minhas verdadeiras colegas e amigas, no sentido literal do termo, que encontrei naquele mundo cão da universidade. O resto são cascas, como alguém costumava dizer. Para além de sermos colegas, tornámo-nos companheiras nos trabalhos de grupo e para tudo o resto, e com o tempo a passar, apeguei-me a elas e entendi, mais do que isso, que sentiam o mesmo por mim. Apesar das minhas incessantes dúvidas em longos e difíceis momentos da minha vida: académica e pessoal. Foram 4 anos e meios com muitas histórias, umas loucas, outras nada loucas - como tal é de se esperar de uma boa aluna universitária - , mas o que realmente é importante dizer é que me ajudaram quando mais ninguém o quis. E isso não vou esquecer nunca. Straight from the heart. Lamechas, e tal, piegas e tal..Mas hey..eu sou assim. E gosto.
S. e S. Combinámos na Avenida da Igreja e foi lá que acontecu o almoço num simpático e deserto restaurante chinês. Pois. Canibalismo? Não sei, nem quis dizer. Já não comia comida chinesa - ou a "ocidentalização" de tal coisa - há uns tempos e gosto. Se como homem, mulher, cão ou vaca, já me chega a ser um pouco indiferente..Desde que me saiba bem, é o importante reter, não? Quando comi crocodilo em Cuba, tava-me a cagar se aquilo era crocodilo ou não. Comi e gostei. Na realidade pareceu-me carne de vitela branca e, portantos, como podem calcular, não me fez qualquer tipo ou espécie de confusão. Aqui c'est le meme chose (para os galicistas fanáticos, peço as maiores e mais sinceras desculpas se cometi alguma gafe) e entrei sem reservas, nuns médios saltos, de cabelo escorrido e top descaído. Devo dizer, abonequei-me muito nesse dia. Demasiado para o que costumo fazer.
Fitas, descrição, timidez. Mesmo gostanto muito delas, tive de assinar as fitas para a benção, o que me fez ficar à parte durante imenso tempo e também me senti meio retraída, talvez por elas serem moças muito às direitas e eu ser mais dada às esquerdas, de preferência, com uma bela música de fundo e uma conversa descontraída sem grandes formalidades. Falámos, ouvi as novidades e dei as minhas - que diga-se de passagem, neste momento, ainda não há muitas para dar -. Dei a minha dose de carinho naquelas fitas. Meninas, meninas, que saudades. Fiquei com pena quando nos despedimos. Lá está, é o sentimento de nostalgia que me invade. Secalhar agora só as vejo daqui a uns dois meses. E tivemos anos e anos juntas, lado a lado, durante horas, caladas ou a palrar, sem saber que, inconscientemente, o conhecimento mútuo crescia, gradualmente, a cada segundo passado.
Bairro Alto. Música, agitação, calor, bebidas e tabaco. E?..Cenas para um próximo capítulo.

maio 10, 2006

"..Et exultavit.."

Voltei a cantar hoje. Depois de umas semanas afectada, por causa de uma laringite, decidi fazer uns vocalizos, pegar nas partituras e partir no comboio, que já está muito, muito atrasado. Bem, o resultado não foi dos melhores, mas também a falta de estudo e de trabalho só implica este tipo de consequências.. E como tive inválida..melhores dias virão.
Deixo-vos o meu Dia 4, da viagem ao Egipto..e aproveito para informar que estou a escrever o Dia 5..sai a passo de caracol, mas saí e em breve, espero eu, está concluído..

Dia 4 20/07/2004 Terça-Feira

Assuão

No dia a seguir acordei como sempre, cansada, com o corpo todo trucidado, como se tivesse passado a noite numa luta desgarrada com o sono, querendo parar a música irritante do despertador. 6:45. Tinha voltado a dormir umas cinco horas e meia, o cansaço ia-se acumulando mas ainda não se tinha apoderado do meu organismo o suficiente para me tirar o entusiasmo. Afinal de contas, tinha muito tempo depois para estagnar até fazer morrer os pensamentos.
Levantei-me. Bocejava, olhava para o quarto sem, no entanto, conseguir ver a confusão de peças de roupa já usadas, no dia anterior, amontoadas, pousadas na cama ao lado. A confusão do quarto já existia desde que tinha saído do 211 para o jantar da noite anterior e lá estava, composta pelos meus véus como se fossem maltrapilhos para o lixo, a toalha do banho em cima da cama, a mala das rodinhas aberta como se tivesse sido agitada em trapézios de circo, a saia, os lenços, os óculos de sol espalhados na colcha da cama. Depois de desperta, pronta para sair no meu visual branco, reparei que teria de reservar algum do meu tempo para arrumar condignamente aquele quarto. Afinal este era o meu último dia a bordo do “Beau Rivage”, no dia a seguir rumaria para o Cairo e teria de caber tudo na minha mala. Parecia inimaginável, confesso.
A rotina já se tinha instalado e, lentamente, tinha-me habituado à chave defeituosa do 211, à música ambiente da ala dos quartos, à prematura vida matinal no barco, recheada de uma musicalidade francesa e de uma mordomia irritante, onde cada empregado nos saudava e servia na melhor das excelências. A rotina do pequeno-almoço, a rotina das visitas, das viagens de camioneta até um determinado local arqueológico, a rotina da guia que se tornou uma presença obrigatória, a rotina do calor, a rotina da comida, que jamais nem nunca me fez mal, a rotina do cheiro daquela terra, a rotina da presença do Nilo, a rotina da língua árabe, a rotina da especiaria, a rotina de estar de férias no Egipto. Nada me perturbava. Tudo me maravilhava.
Após uma ligeira refeição na imensa sala de refeições na cave, um dia estava prestes a iniciar-se, um último dia no barco, um último dia antes de chegar ao limiar da metade da minha calma aventura pelas inefáveis terras do Nilo.
8:00. Partimos. Sentei-me, confortavelmente, na parte traseira do nosso veículo, rumo à grandiosa barragem do Assuão. Mirabulando, reflectindo sobre aquele país, ouvia Ana que explicava, no seu português enrolado, explicações sobre a história da barragem do Assusão, considerada por muitos prejudicial à fertilidade dos campos e responsável pelo visível desvanecer do outrora largo e dinâmico rio Nilo, símbolo da vida e das forças que guiavam os antigos egípcios na suas vidas. O autocarro ia, aos solavancos habituais, pelas velhas estradas de alcatrão da cidade, semelhantes a carreiras de uma civilização rural em estado avançado de extinção, onde a pobreza, apontada pela assimetria visual e física, se encontrava mais camuflada com pequenos espaços verdes, pelo bonito edifício de uma estação de televisão egípcia, pelo rosado “Old Cataract Hotel”, no qual Agatha Cristhie escreveu “A Morte no Nilo, e por uma minoria de edifícios circundantes de vedações ajardinadas, pequenos arbustos enganadores de bem estar e uma frescura viva em cada alicerce exposto.
Demos voltas à cidade, durante uns vinte minutos, sempre com a voz de Ana a servir de acompanhamento, voz que se tornara ruído, fragmentos de sons distorcidos onde o vago de “Nasser”, “velha barragem dos ingleses”, “grande barragem”, “papiro” e “perfumes” ecoavam na minha mente, de cinco em cinco minutos, como um sussurro repetitivo, acompanhando a analogia da paisagem, conjugado nos saltitares de um autocarro exposto a um calor precoce e limpo. Distraí-me, apenas olhei para a simplicidade das pessoas, tapadas pelas túnicas, bordadas, escuras e protectoras de um sol ardente, para as crianças sujas, descalças, de cigarro na mão. Observei que as pessoas eram mais escuras e com olhos claros, o que fazia daquele povo do já Alto Egipto uma aproximação à África negra, à África do Sudão, país a sul dali, sendo também a presença do povo Núbio, autónomo mas não independente da República Islâmica do Egipto, com a sua beleza negra e mista, um reforçar para que a fisionomia do povo daquela cidade se destacasse em relação a tudo o que tinha constantado anteriormente. O superficial lago Nasser encontrava-se diante dos nossos olhos, construído décadas antes com os seus 500 kilómetros quadrados de extensão, num fio de azul sossegado e direito, morto, plástico, parado, irreal, numa morbidez e aridez, num espaço sujo, descolorido, “desverdejante” que ignorava a beleza do Nilo, representando sob o meu crítico e firme olhar o chamamento para um espaço e tempo remotos, fugazes ao meu desejo.
Parámos na Grande Barragem do Assuão, com quatro metros de espessura, cento e onze de altura e novecentos e oitenta de largura na base. Erguida para regular o fluxo do rio Nilo., a Grande Barragem do Assuão revela o apoio indiscutível da União Sociética nesta obra, o chamado “alto dique” de Assuão.
Teríamos cerca de cinco minutos para ver o lago, a seca paisagem e tirar fotos. O dia seria longo, muitas coisas nos esperavam e não me cansei em pedir para me tirarem fotos, numa boa disposição aberta e espontânea. Escusado será dizer que também tive de tirar fotos. “Não há almoços grátis..”. Já eram nove da manhã, e embora o calor estivesse longe de atingir o seu clímax, sentia a boca seca e a mochila vazia por não ter uma provisão. Dirigi-me a um quiosque perto e, com uma grande e fresca garrafa de água “Baraka”, decidi abastecer-me por entre o abafado ar que consumia as nossas energias. Avistei do outro lado um enorme templo egípcio, segundo Ana, o Templo de Kalabasha, construído já na era romana, na qual o Egipto foi ocupado e governado por romanos.
“Famiiiliiaaa”. Ana e o lenço de padrão laranja num ponteiro, agitado com fervor. No meu visual claro, vislumbrei o cenário com atenção e ingressei no autocarro, num lugar traseiro perto do grupo que me acompanhava a cada refeição, neste novo dia-a-dia.
O infinito lago Nasser me surpreendera pela sua imensidão e vastidão, como se fosse uma mancha, uma nódoa no deserto, mas não me fascinara com a sua uniformidade e unicidade, apenas me colocara espantada perante tal infinidade de água, não um elo de dinamismo egípcio mas uma metáfora de algo inerte, inútil, incapaz de igualar todo o passado vivo em casa esquina. Á medida que dialogava com os meus companheiros e o autocarro avançava, Ana ria-se de microfone ligado, começando a discursar sobre o Tenplo de Philae, dedicado à conhecida deusa Isís, seu centro de culto, construído originalmente na Ilha de Philae, ali no Assuão. Correndo risco de submersão, deu-se a transladação do monumento para a Ilha de Agilika, transformada para se assemelhar ao local original de construção do grande templo.
9:30. O autocarro pára, coloco os óculos de col, ponho na cabeça o chapéu de ganga, ícone da mulher ceifeira, levo as malinhas comigo e parto. Num segundo, homens de túnicas distinas e diferentes nos bloqueam o caminho, uma rampa descendente, com as suas estátuas, postais desdobráveis, tentando apelar-nos com o Figo ou o Cristiano Ronaldo. Ana dá um bilhete a cada um do seu grupo afilhado e seguimos viagem até ao cais.
Talvez pelo grande fluxo de turistas, os nativos ali se encontravam, sentados na lateralidade daquela modesta avenida até à água, com os seus artefactos e obras de arte, as suas pirâmides e camelos de madeira, sempre dispostos a fornecer um sorriso gratuito, esfumante e sujo, por entre gengivas escuras e esquecidas algures no tempo.
Finalmente entrámos no barquito de madeira, cuja pintura branca e colorida escamava, devido ao uso diário e intenso, repetível e mecânico. Sentada a uma ponta, sob a sombra do terraço, vejo o jovem egípcio, de uma pele muito escura e olhos verdes, de uma beleza abismal, a largar o transporte do cais, desapertando uma forte corda, desfazendo o grande nó. Olho à minha volta e dou-me conta das dezenas de barcos ali presentes, decorando também o local os pequenos aglomerados verdejantes distantes, pontuais e pouco profundos. Vejo casas.
“Prrrrrrr”. O motor arranca, o barco inicia a sua trajectória e miro as casas coloridas na encosta, as casas inacabadas, o cinzento abundante e, mais uma vez, a roupa estendida que fornece um simples modo de existência humana naquele espaço desorganizado e caótico, tão perto de uma centena de vidas ocidentais e desgarridas de côr. Deixo a paisagem traseira do barco, viro-me para a direcção efectuada e vislumbro, a uns cem metros dali as paredes do Templo de Isís, com os seus baixos relevos, figuras humanas e divinas, hieróglifos e zoomorfismos.
A pequena ilha pareceu-me uma visão, com a beleza das paredes erguidas, a água lisa e dormente à sua volta, a vegetação floral, deífica e um amontoado de pedregulhos de naturalidade aparente, indiscutível. Esqueci as toneladas cimentadas e gigantescas da Grande Barragem e voltei anos atrás no tempo, imaginei as côres, as roupas, os cheiros e a realização de rituais, assombrados por velas, instrumentos e túnicas puras.
Chegámos. O calor começa a apertar e bebo quase metade da minha “Baraka”.
Uma multidão de cabeças circulava pelas várias áreas do Templo, onde guias de várias nacionalidades e côres explicavam as origens do templos, os relevos das imponentes paredes edificadas, as figuras de Isís e as suas asas protectoras de ouro, revelando o símbolo da vida: o “anj”. Sendo um legado do Antigo Egipto, dos complexos artísticos mais bem conservados, os capitéis papiroforme e Hatorianos, com a cabeça da deusa Hátor, encantavam o grupo com a sua perfeição, perante o sol abrasador que humedecia a pele facial. Seguia Ana, tirava fotos e ouvia as suas breves explicações, afirmações que se tinham tornado clichés: “O tecto caió pur causaa de terramoto acôntecidu nu ano di venti sete antess di cristu”. Querida Ana. Nem se apercebia da quantidade de vezes que dizia as mesmas frases. O seu discurso parecia tão mecânico, tão sabido, tão interiorizado que as pupilas não tinham expressão, as palavras fluíam, por vezes, sem uma intenção ou um significado. Mas cada um de nós entendia o que ela dizia..Bem, mesmo quando dizia “borrar” em vez de “apagar” e “cucarachas” em vez de “baratas”. “A genti sabe..”, “a deusa Hátor, deusa da música, da arte e de todas essas coisas muito bonitas” e “estes capiteís que andam pur aqui” tornavam-se já expressões-chaves das suas explicações, motes linguísticos, dicas para iniciar qualquer facto ou relevo histórico, enquadrados naquelas pedras milenares.
Eram quase 11:30. Depois de ver aquela paisagem e disfrutar do encanto mágico daquele paraíso cultural, voltámos ao barco protegido para ter com um motorista qualquer, cuja cara era semelhante a um árabe qualquer: complexão facial morena e um belo bigode farfalhudo.
Próximo destino: o Instituto do Papiro em Assuão. Iríamos visitar um sítio onde se vendia papiro verdadeiro (e não o falso que se via nas ruas, nas mãos dos comerciantes), se fazia demonstrações das várias etapas do processo de produção da folha de papiro e, consequentemente e logicamente, poder-se-ia comprar folhas de papiro. Já conseguia imaginar o meu quarto com uma bela moldura, com um magnífico papiro na parede..”Famiiiliaa!Vamos!”. Acorda Lara. Deixei o dispensável na camioneta e lá fui, seguindo a guia e os meus compinchas para o interior do edifício.
Todo o grupo que habitava o “Beau Rivage” comigo, tinha vindo no mesmo avião comigo. Éramos cento e quarenta pessoas ao todo mas dez dessas pessoas foram para um cruzeiro de escalão inferior, de quatro estrelas, que, digamos com toda a frontalidade, não tinha comparação com o belo navio “Titânico”. Das restantes cento e trinta pessoas fez-se uma divisão, ou seja, as cento e trinta pessoas estão divididas e distribuídas pelos quatro guias, Ana, Aziz, Benji e Ali, que funcionam como tutores nestas jornadas, cada um com uma bandeira portuguesa, um lenço ou uma cantiga. Para que o programa funcione bem, os quatro grupos não podem ir aos mesmos sítios, ao mesmo tempo. Portanto, quando cheguei à porta do Instituto do Papiro, alguns companheiros já lá estavam, outros iam a sair com grandes cilindros em sacos de plástico, outros estariam noutro sítio qualquer a fazer algo...interessante, espero eu.
Já passava do meio-dia, o sol estava alto e no pico da sua luz, criando algum choque à entrada no edifício escuro, onde a visão demorou algum tempo a adaptar-se com o objectivo de poder distinguir as formas, as linhas, as côres. Desci umas escadas, segui as raparigas do Porto até nos confrontarmos com uma sala relativamente grande, recheada de molduras, expondo dezenas e dezenas de folhas de papiro nas paredes. Mesmo do lado direito das escadas havia um balcão grande, com três ou quatro funcionários, recebendo talões de clientes, pegando em folhas de papiros, enrolando--as e encaixando-as em fortes cilindros de papelão, forrados com imagens conhecidas da antiga cultura egípcia. O ritmo era veloz e certo, os sons difusos e distintos: vozes num árabe audível, num volume perceptível, papéis rasgantes, batidas agudas e fortes. Olhei em redor. Perdi-me um pouco, uma vez mais, no característico ambiente do Médio Oriente, onde a desorganização é uma regra certeira.
“Pum.” A batida. É uma demonstração da criação do papel de papiro, feita com o corte da flôr de papiro. Ana chama-nos e aproxima-nos do senhor que, num espanhol apressado e trapalhão, exemplifica para uma vintena de pessoas todo o processo manual e mecânico. A gordinha e fofinha Ana dá sinal para aguardarmos e diz: “Este senhor naum sabi português, mas fala espanhole e vaii explicá o fabricu da fôlha de papiru para vôcêss.” Assim aconteceu. De uma flôr de papiro, o hábil egípcio corta o caule em tirinhas miudinhas, coloca-as num engenho que as esmaga e alisa. O espanhol deste fabricante de folhas de papiro era rápido, circulando à velocidade de um comboio alfa. Só que tinha problemas nos travões. “E assi...bla bla..lo papiro es..bla bla bla”. O ruído naquele ambiente era elevado e a dada altura concentrei-me, unicamente, naquilo que fazia. Passados alguns dias das tiras de papiro ficarem de repouso, extraindo-se o sumo e alisando-se, já é possível tirá-las e formar uma folha de papiro à medida das nossas necessidades. Coloca-se uma tira na vertical, utiliza-se um rolo para ficar completamente direita, de seguida coloca-se outra tira na horizontal, ficando uma das extremidades por cima da ponta da tira que já tinha sido esticada. E assim, neste processo alternado de horizontal/vertical, colocam-se as tirinhas do caule do papiro, até aparecer uma folha fina, mas muito resistente, diante dos nossos olhos. Fico impressionada com a inteligência e modernização dos egípcios que, há milhares de anos, criaram as folhas de papel mais resistentes do mundo.
Teríamos todo o tempo para inspeccionar a sala e comprar folhas de papiro ao nosso gosto. No início, estava junto das três moças de sotaque breijeiro e nortenho, mas elas fugiram em rebanho para áreas longínquas, interpelando Ana em algumas vezes, noutras fazendo contas com uma caneta e um papelinho cheio de regras de três simples. “7 libras egípcias é um euro mais ou menos..Entaum 100 seraum..”. Parava diante de cada quadro exposto na parede e admirava-me com cada curva, só que os preços muitas vezes podiam servir como dados de repulsa activa no momento, contrabalançando com a beleza de dezenas de papiros, de vários tamanhos, pintados à mão, com formas, desenhos, mitologias, cores ricas e vivamente desenhadas.
“Alô Madame.” Um jovem funcionário surge. No Egipto não se conseguia ficar muito tempo sozinha, numa pose contemplativa e intelectual. Aliás, quase que diria que isso é um gesto anti-muçulmano, na medida em que naquele mundo onde me encontrava, a preocupação fundamental era saber se havia dinheiro para alguma comida até ao final do dia. Os intelectualismos e reflexões tinham apenas lugar no instinto de sobrevivência daquele povo, que dependia de trocos de turistas e de colecções de quinze marcadores de papiro falso, vendidas na rua em troca de um euro. Depressa senti-me com remorsos por desejar que o rapaz me virasse costas. Mas ele falava, falava e falava. A minha postura de ocidental, naquele instante, tornava-se uma realidade, mas minutos depois, tendo já dado alguns passeios à volta do recinto, entendi a sua necessidade de vender, de ganhar dinheiro e, por conseguinte, de estar ali. Decidi enfrentar o desafio de falar com um egípcio que não entendia inglês, nem era capaz de comunicar assim, fluentemente, abordando-o da melhor forma possível, utilizando aquilo que podia. A cada papiro que via, ele explicava qualquer coisa. Eu não entendia nada. “Sim, o quadro..the picture..o que representa? De que trata? Di que parle it-il?”. O meu francês tinha ficado muito enferrujado, especialmente depois daquele ano fatídico de 1996, quando o meu pai foi parar a um hospital algures na França, depois de termos ido a Paris e, como ninguém falava inglês no hospital, vi-me obrigada a exercitar os meus conhecimentos da área para conseguir interagir. Felizmente, havia um médico no hospital que falava inglês e conversou comigo. Mas desde aí que o francês foi para uma gaveta da arrecadação apoeirada e, agora, via-me forçada a utilizar uma imaginação poliglota, falando “línguas mixes”, sentindo-me uma mulher de quase um metro e oitenta a tentar ser idiota (a tentar falar muitas línguas), acabando por me sentir uma idiota total por não estar a ser consistente o suficiente para ser clara e óbvia. A ocupação francesa em África teve as suas consequências: a maioria da população egípcia, para além do árabe local, manejam razoavelmente o francês, servindo de arma para atrair turistas.
Tutankhamon, a deusa Maat e a representação do Mito da Criação, Nefertiti e o seu elegante pescoço, a deusa Isís com Hórus e Osíris, a astrologia egípcia: todos estes temas eram representadas nos papiros, sem fim. Fiquei fascinada com uma pintura de Nefertiti, cujo fundo era preto e a formosa imagem da cara da mítica mulher emergia, como se estivesse num dia de escuridão, brumas e sombras. Diferente de todas as outras imagens, decidi levar aquela e comuniquei a decisão ao rapaz. Ele informou-me logo que se comprasse cinco papiros, poderia levar outro. Foi isso o que aconteceu. Havia tanto papiro bonito, que escolhi cinco: a imagem de Nefertiti; a representação do olho de Hórus; a representação do mito da deusa Maat, a equilibrar o mundo, a deusa Nut, o símbolo do céu, a noite que surge depois de ter engolido o dia, conjuntamente com Geb, a terra; a chegada do defunto ao julgamento feito por Osíris, onde será pesado o seu coração, testando a sua leveza com uma pena; uma imagem da cabeça de Tutankhamon. O rapaz perguntou que papiro queria levar e apontei para uma moldura na qual se podia-se Nefertari e Isís juntas, de mão dada: Isís, com o disco solar e Nefertari, com as vestes soberbas do Império Novo.
Com a calculadora na mão, fazendo contas rápidas, o moço, talvez mais novo que eu, estendeu uma factura com o preço de cada papiro e com o total. Bem, no final de contas, o que são cinquenta euros quando se trata de papiro feito e comprado, in loco, no coração do Egipto?
13:15. Voltámos para a camioneta. Ainda nos esperava um sítio antes do bem merecido almoço no “Beau Rivage”. Acabei por voltar à rua para dar um euro a um rapaz de magra estatura, em troca de quinze marcadores de papiro falso, com imagens alusivas à mitologia e com símbolos hieroglíficos. No interior da camioneta havia uma arca com garrafas de água fresquinhas e por euro e meio, arranjava-se uma. Dei o dinheiro ao motorista de face inflexível e tirei uma garrafa. O calor do Alto Egipto era forte e quanto mais se descia no mapa, de mais água o organismo necessitava para a sua auto regulação.
“A genti sabi que os egípcios antigus, gostavam de perfumes e vamos cheirá agora uu Jasmin, a flôre de Lótus e outras côsas.” O português, único, de Ana. Sorria enquanto a ouvia. Daí a minutos estaríamos no “El Sultan”, um antigo palácio em Assuão que agora vendia perfumes, frasquinhos de vidro para as essências e outas coisas: era o “perfumes palace”, o “perfumes e companhia” da zona.
Chegámos. Um grupo de homens estava cá fora, numa espécie de varanda antes de se entrar no edifício antigo e de dimensões generosas. Todos de camisa branca, riram e exclamaram quando o nosso grupo passou diante dos seus olhares negros. Depois de subirmos umas escadas externas, que nos deram acesso ao andar superior da casa, acedemos a uma sala interior, com tapetes islâmicos e armários antigos com vitrinas cheias de frascos de perfume, centenas de frascos, de dimensões e côres diversas, organizadinhos em filinhas, na sua forma feminina e arredondada. Havia um aroma forte no ar, bastante familiar. Será que os egípcios tinham assaltado o Calvin Klein? Ana explica que teremos um guia, uma vez mais, fazendo uso do espanhol, para nos explicar todas as maravilhas daqueles cheiros desconhecidos.
Um rapaz alto, bonito e elegante, surge na sala. E é aí que nos sentamos nas cadeiras próximas dele. Na verdade, foi a indicação que ele nos deu...e a tempo, porque se a cadeira não estivesse lá perto, eu poderia ter caído no chão. Foi o homem mais lindo que até então tinha visto no Egipto e, certamente, dos que já tinha visto na minha vida e dos que alguma vez iria ver. Devendo ultrapassar o metro e oitenta, usava uma camisa branca semi aberta, umas calças pretas de poliester e um cinto castanho, de pele falsa, apertado na cintura baixa. Formoso e proporcional, o guia tinha o cabelo de um preto muito escuro, quase arroxeado, meio avolumado, as feições bem desenhadas e perfeitas com duas sobrancelhas firmes e grossas, dois olhos com pestanas compridas e ricas, um nariz comprido e esguio, bonito. Os lábios carnudos, as mãos firmes e grandes, de tons escuros e veias desenhadas, davam-lhe um ar muito atraente, em conjunto com a sua postura, os gestos, o tom de voz grave e sensual. Não fui só eu que me deixei levar pelo sorriso branco e limpo daquele homem perfeito, também outras mulheres comentaram a formosura daquele príncipe das arábias, agora posicionado do meu lado esquerdo, alto como um deus num pedestal.
Foi interessante perceber que os antigo egípcios foram os mentores dos perfumes, muito antes dos fraceses que, em noventa por cento dos perfumes e aromas base, vão às fragâncias egípcias roubar a base para esse negócio milionário. Daí, aquele aroma ser-me tão familiar. As grandes marcas internacionais de perfumes têm como base os extractos das flores da terra mágica do egipto, marcas como a Kenzo ou a Cacharel. De facto, cheirei algumas essências e vinha-me logo à cabeça o meu perfume, na maioria das ocasiões, “Flowers” da Kenzo. Jasmín e Lótus são as conhecidas e famosas essências de flores de perfume que cheirámos, com curiosidade, sendo demonstrado que uma só gota destes perfumes provoca um odor activo e forte, um efeito que muitas mulheres procuram evitar.
Das misturas destas essências, foram criados vários perfumes como o “Tu-nkh-Amon”, praticamente o mesmo cheiro que o “Dracoir Noir”, o perfume “Queen Hatshipsut” que se assemelha, em muito, ao meu usado perfume “Eternity” e a “Queen Cleopatra”, cujas reminiscências aromáticas nos lembram o perfume “Poison”. Engraçado. Há uma relação entre estes títulos. É claro que há perfumes locais, como o “Harem Perfumes”, a “Nefertity” ou “Amon – Ra” mas é o “Secret of the Desert” que dita a lenda de Nefertari e as suas técnicas de sedução para encantar o faraó Ramsés II. Olhávamos o guia que explicava que este perfume era muito antigo, remontava à época de Nefertiti, uma bela mulher, das mmais belas que já existiu no Egipto, que já utilizava aquela essência para atrair a atenção do marido e excitá-lo sexualmente. Nas suas palavras, “es la base del viagro ejípcio”. Uma risada geral propagou-se na sala. A base do viagra? Ele continuou. “Es meter esto en la piele e l’hombre hacerá louco. Una noche de sexo louco.” Os vários casais a bordo riram. Brincavam, afirmavam que queriam experimentar o produto para testar a sua eficácia. A história era curiosa. Nefertiti todos os dias à noite, antes de receber o seu amado, colocava gotinhas do perfume nos mamilos, no umbigo e no órgão genital, sendo isto o suficiente para que o odor fosse inalado pelo homem, provocando um sentimento de excitação, atracção e prazer. Nunca acreditei nesta lenda mas a convicção com que o rapaz transmitia a história e a contava, de uma autenticidade enganadora, conseguia divertir e quase fazer-nos pensar que ele estvivesse a relatar uma verdade universal.
Depois, cheirámos essências de especiarias que eram utilizadas como remédios e curativos: o “Musk” ou o “Royal Ambar”, utilizado para se ober um sono tranquilo, calmo e afastar os problemas de enxaquecas.
Shopping Time. Não consegui resistir à tentação de comprar quatro frascos pequenos de perfumes diferentes que me custariam à volta de sessenta euros. Bem, a minha carteira estava cada vez mais leve e, como havia multibanco ali, nem hesitei em utilizar o cartão. “Jasmin”, “Lótus”, “Secret of the Desert” e “Royal Ambur” foram os aromas que me entregaram, em quatro frasquinhos devidamente rotulados e identificados, numa caixinha, uma vez mais, de cartão forrada com imagens de estátuas, deusas e alegorias conhecidas. Uma moça de véu atendeu-me e eu agradeci, com o habitual “shokran”.
O grupo fazia compras, mostrava o que tinha comprado, falava avidamente e de tom leve. “O perfume da flôr de Lótus é muito forte..”. “Ah..eu gostei muito do de Jasmin..”. “Ahhh moço, não tem aí gardénia? Gosto muito.” 14:00. Éramos os últimos do barco a passar por ali, certamente já todos estariam refastelados a comer uma entrada qualquer deliciosa e uma carne picante, tendo como sobremesa umas belas fatias de melancia. A fome apertava e enquanto nos preparávamos para abandonar o velho palácio islâmico, observei o guia exótico durante uns segundos, numa discrição concreta enquanto preparava os óculos de sol e a minha mente para enfrentar a normalidade do calor daquele país e de todas as outras coisas que encontraria lá fora.
15:00. Assinei a folha, com o registo da garrafa de água que encomendamos, e fui vestir o meu bikini para dar um mergulho na piscina. Na verdade, quando chegámos ao “Beau Rivage” já todos tinham chegado à sobremesa pelo menos e o nosso almoço foi mais calmo do que o habitual, envolvendo também alguma lânguidez e sonolência.
Às 15: 30 os quatro grupos iriam sair do barco, numa visita facultativa entitulada “Aldeia Núbia”. Basicamente, em troca de trinta euros, iríamos de barco até uma praia fluvial do Nilo para tomar banho, andar de camelo até uma aldeia núbia, entrar numa casa dos nativos, comer alguma da sua comida, conhecer um pouco da sua vida. A visita estava programada para durar toda a tarde, prevendo-se que chegaríamos ao “Beau Rivage” por volta das 18:00. Como teria apenas meia hora para disfrutar do barco, decidi não ir fazer a sesta como parte do grupo. Fui ao 211, num ápice, vestir o bikini. “Pânico”. O quarto estava desarrumado, a roupa espalhada na cadeira e na cama ao lado. Teria de preparar tudo à noite antes de partir. Vesti, finalmente, o bikini, levei o protector, não sabendo ao certo porquê pois já sabia que não o iria usar, o telemóvel, os óculos de sol. Deixei o meu 211, com a sua televisão não operacional, fechei a porta à chave e, dirigi-me, através do corredor com música ambiente e retratos de destinos paradisíacos africanos, na parede, até à recepção. Entreguei a chave, subi as escadas para o primeiro piso, depois fui em frente e subi as escadinhas à direita, tornando a virar nessa direcção, para chegar ao terraço. Calor.Tirei uma das toalhas, reservadas aos viajantes num armário junto das espreguiçadeiras, estendi tudo num sítio próximo e entrei na água aquecida da piscina.
Via duas ou três pessoas do outro lado do terraço, a conversarem à sombra. Atracado ao porto, o “Beau Rivage” não se moveria, nem mais um milímetro. Aquele era o derradeiro destino antes de irmos para Abu Simbel de autocarro, uma conhecida localização a trezentos quilómetros, a sul. Entendi que não gozaria mais do facto de dormir enquanto o barco andasse, ou de apreciar a bela paisagem enquanto o “Beau Rivage” deslizava. Parte da viagem já tinha passado e, perante aquele cenário instantâneo de um barco fantasma, no qual as pessoas se refugiavam nos quartos para um repouso viciante, pensava na falta que me faria “Monsieur” ao servir-me o pequeno almoço, a vista para o Nilo da janela do meu quarto, o telefone a tocar para nos acordar diariamente, a pista de dança minúscula, o dormitar encantado numa espreguiçadeira, os “francesismos” no ar, as orações dos minaretes, os sorrisos cuja origem era um mistério, a sala de refeições, os avisos durante o jantar sobre a jornada do dia seguinte, o tilintar da chave do 211 na sua chapa pesada e dourada, o “Bonjour” mimoso, a almofada baixa e branca, a alcatifa do quarto e do corredor, a música no hall, as gargalhadas, as cartadas no terraço sob o aparato de um bafo afrodisíaco, a piscina cubícula, os tremeliques de um navio em movimento durante o almoço ou a noite, as mil palmeiras falando de beleza, a linha horizontal de um leito, outrora vivo, nesta temporalidade já adormecido.
Saí da piscina e conferi o relógio. Eram quase horas de partir. Sequei-me com a toalha, enquanto tremia. A água era quente e quando saía, embrulhava-me sempre na toalha como os miúdos fazem. Fui ao 211 e depois esperei ao pé da recepção, como sempre. As pessoas reuniam-se. Revi os meus companheiros mais novos de viagem, rimos e combinámos mergulhos de grupo na praia do Nilo.
15:30. Saímos. Cada grupo entrou num barquito diferente, coberto e modesto. Durante meia hora avançámos pelo Nilo, acabando por enveredar por ramificações, um rio estreitinho com muita vegetação, pedras, vida.
A aridez poderia ser uma constante, com dunas monstanhosas junto à margem do rio. A animação reinava no barquito. Um menino egípcio, conhecido, parente ou amigo do dono do transporte fluvial, cantava e batia palmas, tentava expandir a alma e o espírito de grupo que se encontrava, ainda, sob influência da acção anestesiante “pós-almoço”, onde a sonolência e o bocejar imperava. Mas logo, o rapazola pequeno, sujo e fascinante pelo seu olho verde de príncipe, montou uma banca no centro do barco, expondo colares, pulseiras e obras de arte artesanal, tentando culminar em si o centro das atenções do grupo.
Não liguei a nada, porque nada me agradava dali e o meu estado de espírito era outro. Tão perto daquela natureza exótica, observava felucas, pequenos pescadores e tocava ao de leve na água do Nilo. Garotos nadavam e aproximavam-se nós, como dolfinhos ágeis, de uma humildade presente e bela. Penduraram-se no barquito e cantavam, à espera de uma moeda ou de um sorriso. O barco avançavam e lá estavam eles, à pendura, de mão estendida. Um deles, era completamente careca e muito muito escuro, mas tinha olhos lindos, olhos que jamais tinha visto noutro lugar ou estância. Eram verdes, verdes que quase se tornavm amarelados, quando o sol incidisse neles. As longas pestanas abonecavam-no, davam-lhe um ar dócil e bonito. Contudo, a cabeça grande e disforme, transparecia uma imagem de doença e debilidade, algo que me fez sentir sensibilizada. Dois garotos brincavam nas águas perigosas do Nilo, arriscavam as suas vidas, brincavam na podridão e pobreza, tudo para conseguir uns trocos nossos, trocos esses que representavam fortunas para eles. Ninguém dá nada e, cansados, fogem para outro barco de turistas recheados. Um moço aproxima-se num pequeno bote e repete o mesmo ritual, já executado pelas crianças.
Agarra-se a um pneu que se encontrava do lado de fora do barco, pretendendo ir à nossa velocidade, procurando, como os meninos, uma moeda, um cobre, umas luzes para o ajudar a iluminar o caminho. Que expressão mais “cliché”. Ele acabou por desaparecer, sem eu própria me aperceber e, conforme os minutos escasseavam naquele passeio de brisa quente, íamos entrando por caminhos, navegando por leitos estreitos e quase selvagens, nos quais a vegetação era alta, diversificada, de uma virgindade incomparável à palmeira junto ao rio.
A dado momento, alguém grita. “Um crocodilo, um crocodilo!!”. Olho para trás, sigo o indicador das pessoas, espantadas, num misto de medo e aventura surpreendente, apontando para um pedragulho, a uns bons metros de distância, na rectaguarda lateral do barquito. O crocodilo repousava em cima da pedra, impávido e sereno, indiferente ao meio ambiente e à eventual poluição sonora que pudêssemos estar a provocar, passando no seu encalço. A meu ver, com aquele charme todo, só faltava uns óculos de sol à anos oitenta, o protector e uma toalha colorida, para o cenário ficar definitivamente completo. Completamente inerte, tivemos sérias dúvidas sobre o estado físico do animal, levando-nos a crer, em escassos milésimos de segundos, que estaria morto e embalsamado, pronto para ser levado para um grande museu sobre vida animal.
“Com que então já não havia crocodilos no Nilo, hein?” Mal acreditava no que tinha acabado de ver. Tudo o que tinha ouvido sobre crocodilos já me tinha sido confirmado como improvável e impossível. Não iria encontrar crcodilos no Nilo e todo o grupo se encontrava perplexo. Tirei a fotografia. Assim, não teria que enfrentar grandes contra argumentos.
Avançámos, lentamente, até chegarmos a uma pequena praia. Depois de termos avistado um animal tão pacífico e humanizante, muitas pessoas deixaram de querer banhar-se naquelas águas. Segundo Ana, o Nilo tinha um problema de contaminação da água, que poderia originar doenças várias, contudo, aquele cantinho estava limpo e parecia delicioso, na verdade. A água era bastante transparente e, conforme se avançava no nado, o fundo passava de areia a a um conjunto de pedras com gusmo.
Quando atracámos junto à areia da praia, os meus companheiros de viagem mais novos, já se encontravam em água, felizes e contente, em mergulhos chapados, tremeliques aéreos e gargalhadas sufocadas. “Isto é porque não viste o crocodilo.”, pensei. Teria uns minutos rápidos para disfrutar do local, depois iríamos de camelo num caminho estreito, feito de areia e terra batida, a meio do monte, tendo do lado esquerdo a beleza do Nilo. Despi-me para juntar-me à festa aquática. A ideia do crocodilo ainda me estava muito fresca, mas não consegui deixar de agarrar aquela oportunidade, seria talvez a única vez que poderia refrescar-me nas águas do mais comprido rio do mundo. Além do mais, o calor era muito, o corpo, perante tanta frescura, não resistiu.
Deixei tudo dentro do barco e fui a correr até à água, para junto dos novatos. Rimos, divertimo-nos e nadei para longe. Descontraí-me. O meu corpo estava leve à superfície, o cabelo comprido e liso, espalhava-se como se um grande e pomposo coral fosse. Sentia-me viva, limpa e feliz, com gotas de água morna a escorrer-me pela cara, o coro cabeludo imerso numa pureza plena de doçura, dirigido a sensações longínquas daquelas que já me tinha habituado a sentir na azáfama da cidade. Mergulhei. Quis abrir os olhos mas não consegui. Toquei com as pontas dos dedos dos pés no fundo, sentindo a dureza de pedrinhas e pedronas. O fluxo da água no nosso corpo é uma sensação maravilhosa, das mais poderosas e sensuais que se pode viver, como se ele fosse acariciado e tocado, embalado por infinitas partículas que o embelezam, soltam-no, fazendo-o voar. Eu sentia-me assim. Perdida naquele conforto e, ao mesmo tempo, protegida, semi adormecida à superfície, nadando e virando os membros corporais, de olhos fechados.
Contei que tínhamos visto um crocodilo mas não acreditaram, talvez por pensarem que sou muito criativa. Sei lá. Em vez disso, os novatos e inexperientes subiam para o terraço do barco e saltavam de cocras, repetidamente, de voz gritada e rebeldia segura, salpicando os restantes companheiros, numa despreocupação digna de inveja. Refilei por ser salpicada uma ou duas vezes mas depois desisti e comecei a interagir de uma forma totalmente informal. Por outras palavras, salpiquei também, forte e feio.
Saimos da água. Fui secar-me rapidamente com a toalha, vesti a roupa e lá fui eu, com a água a escorrer, conduzida até meia dúzia de camelos. Como o passeio de camelo não era obrigatório, quem não estivesse disposto a tal, iria de barco até à Aldeia Núbia. Deixei o dispensável no seu interior e, nervosa, fui convidada a subir para cima de um camelo, animal de duas bossas, alto, elegante, cujo cheiro, contudo, tinha um característico e forte odor. Não era a primeira vez que andava de camelo, já o tinha feito na Turquia nos meus ingénuos dezasseis anos. Tinha andado uns segundos para tirar uma fotografia e, apesar de ter uma vaga sensação de ondulação da experiência, não estava muito recordada do processo. Subi para cima de um camelo molengão e refastelado, indiferente à minha chegada, mastigando e remoendo qualquer coisa de irreconhecível. “Woowww”. A subida foi repentina e ri-me. Fomos.
Em filinha indiana, um grupo de quinze pessoas iam numa vaga estrada, em cima dos seus camelos. Já estava seca. O calor abrasador da tarde dissipava, num ápice, toda a frescura. À minha esquerda, encontrava-se o Nilo, uns cinquenta metros abaixo, pois o caminho estreito, cortava um monte a meio, colocando-nos, com alguma altura, acima daquela natureza verdejante e única. À medida que avançámos, o carreirinho subia mais e mais altos ficávamos. Para que o passeio fosse agradável, teria de ter as pernas para a frente, os pés cruzados e apoiados, segurando também na saliência da “cela” montada. De facto, estar em cima de um camelo podia ser pouco seguro. Para a frente e para trás, para a frente e para trás. A parte superior do meu corpo, com o movimento do animal, formava ondulações, estava constantemente em movimento e, dada a relativa altura do animal, um ou outro movimento inesperado, podia fazer desesperar as mentes mais inexperientes.
A viagem prosseguia e, após já não me lembrar o que estava ali a fazer exactamente, deixar de sentir as costas e os movimentos descuidados do camelo, observei o que me rodeava. Reparei na areia avermelhada e alaranjada, nas dunas do nosso lado direito que completavam aquele monte. De novo, a antítese do verde e do verdejante, junto ao Nilo e do árido, longe dele. Ao fundo, casas coloridas surgiam. Era o nosso destino.
“Vvvvvvv..Vvvvvvvvv”. O bafo do camelo que ia atrás de mim batia nas minhas costas. Virei-me para trás e dei um salto. A proximidade já tinha deixado de ser pública, há muito tempo, para ser de índole íntimo. Todos os camelos estavam ligados ao da frente por uma corrente, presa numa argola, uma espécie de piercing, que cada animal tinha numa das narinas. Daí, essa corrente se prendia à parte detrás do animal que seguia em frente. O que acontece é que o bicho atrás de mim não párava. A sua cabeça estava atrás, depois do meu lado esquerdo, colada a mim, assustando-me com dois grandes e pretos olhos parecidas com duas ameixas húmidas de longas pestanas vivaças. Quase encostado a mim, o camelo inclinava-se, provocando este facto uma gargalhada imenso no companheiro de viagem que incursava, feliz, na parte superior desse animal. Ri-me mas, dada a quantidade de vezes que o animal se encostava e se adiantava no passo, e, tendo em conta o bafo que deixava escapar da boca imunda e verde, constituída por todo o tipo de elementos defecatórios, afastei-me claramente dele, mexi os braços, assustei-o. Credo. Que cheiro. O animal lá andava, precipitava-se para o meu lado esquerdo e a monstruosa cabeça dava, de novo, uma lufada de ar fresco ao meu passeio, com a sua maravilhosa fisionomia. Irritada, praguejei contra o animal, mandei-o para trás. “Oh filho, tens de ir ao dentista que o verdete está a dar-te cabo da dentadura toda!” As gargalhadas, vindas de trás, eram ligeiras mais evidentes. A minha vontade era de lhe escovar os dentes mas, depois, com a patetice da situação caricata, acabei por me rir e gostar daquele camelo que mais se assemelhava a um burrito que já, noutra vida, tinha sido um porco.
Chegámos a uma aldeiazita junto ao rio, constituída por meia dúzia de casitas. As crianças vinham para junto de nós, queriam vender pulseiras pretas com escaravelhos colados, azuis. Eram todas muito bonitas e simpáticas, não nos largavam. Os barcos já lá estavam e fui buscar o resto das minhas coisas, caso fosse necessário. O calor ainda era insuportável no exterior, mas no interior a coisa não melhorava muito e, naquele momento, entendi que aquela família que cedera a sua casa para os turistas, fizera dela algo construído, algo de atraente para os turistas, um “produto” que não teria de corresponder, necessariamente, ao protótipo de casa de uma família núbia. Afinal de contas, quantas famílias daquelas tinham em casa pulseiras e peças artesanaias, em cima do banco de pedra, junto à parede, para vender? E um pequeno aquário com crocodilos bébés? E, quantas mulheres daquelas, faziam tatuagens, um euro cada? É certo que era o negócio daquelas famílias, um povo que se sentia submetido à vontade da República Islâmica do Egipto, sem terra própria, mas com valores rígidos e conservadores.
O interior daquele lar, como todos aqueles lares, era modesto, pequeno e abafado. O chão era a terra batida, com tapetes e as paredes tinham várias côres, sendo o branco predominante. Ana convidou-nos a sentar numa mesa, que estava a um canto, para lancharmos. “Os Núubioss têem vidass muito difíceis, a mulhé trabalha em casa e tem de fazé muiiito para u maridú.” O maravilhoso pão achatado em forma de círculo chegou à mesa, conjuntamente com outras guloseimas próprias como o queijo picante. “Hummmmm, que bom!” Devorámos tudo, bebemos colas fresquinhas e, passados instantes, mais doces típicos vieram. O chão de hortelã também parecia bom, contudo aquele calor pedia mesmo uma coca-cola fresca, uma das minhas bebidas predilectas.
Reparei na mulher que levava a comida. Olhava, constantemente, para o chão, na sua roupa, com o lenço na cabeça, os olhos distantes e um ar vago, infeliz. Era uma mulher jovem, poderia ter a minha idade, contudo parecia presa à sua vida e à sua condição enquanto rapariga. Tive vontade de lhe dirigir uma palavra mas a situação, o problema da comunicação e a falta de à vontade não me permitiram realizar tamanha ousadia. Afinal de contas, aquelas pessoas não iriam encarar bem este tipo de atitude, tipicamente ocidental. Ignorei o caso e pedi para fazer uma tatuagem na parte de trás do ombro esquerdo. Escolhi o olho de Hórus, um símbolo fascinante, que sempre gostara e, posto o fim do dia, onde um céu rosado surgia envergonhado, rumámos para o barco, chegando por volta das 18:00 ao “Beau Rivage”.
A tarde tinha sido cansativa e movimentada mas, mesmo assim, estava disposta a ir para a piscina. Ansiosa, depois de passar pelo 211, corri até à piscina, para dar um mergulho de despedida à amor passional, uma espécie de adeus eterno a alguém de quem gostamos mas que, segundo os cânones e regras, não poderemos, nem voltaremos a ver. O inconveniente foi ter tido a mesma ideia brilhante que metade das pessoas que estavam em viagem comigo tiveram.
A piscina minúscula e quadrangular estava cheia, com juventude e infantilidade personificada, pais, mães, piriquitos. Er. Engano. Saltei para a piscina sem pensar no meu olho de Hórus, a minha nova marca pessoal. Estiquei-me na “super, hiper, mega” descontracção de uma piscina de um final de tarde descontraído, sem pensar em actos ou consequeências. Na verdade, feito o balanço da primeira metade daquela viagem, sentia-me prestes a querer ficar ali, para todo o sempre, durante mil vidas, sem me preocupar com a minha remota e humilde presença, num amado paraíso abandonado, a milhares de milhas dali.
19:30. Saí da piscina, fiz nova maratona para o duche até estar pronta para o jantar. Tinha menos de meia-hora e sentia o tempo a voar. “Bolas, a tatuagem está a perder a côr.” Porta. Chave. Tirar roupa. Duche. Bater. Nódoa negra. Toalha. Limpar. Vesti um top preto, umas calças brancas, calcei as sandálias, arranjei-me, sem olhar para o lixo de moda naquele espaço e voei para fora, para o meu último jantar, através de uma porta organizadora de milésimas de sentimentos e tristezas recalcadas.
20:00. Estávamos prontos, à mesa, esperando que “Monsieur” e todos nos servissem, como nos tínhamos habituado. Falávamos da viagem, das saudades do barco, das tatuagens sexys que fizéramos. Trocávamos “olás” com os vizinhos de mesa e, tendo recebido de Ana uns belos brincos de prata, encomendados, representando dois cartuchos com o meu nome em símbolos hieroglíficos, alguns indivíduso simpáticos, como as moças do Porto e o senhor que conheci no aeroporto, teceram elogios à beleza do adorno. Sorri, plena de satisfação. “Por 30 euros, só podia ser uma coisa bonita”. Às nove e meia, haveria um espectáculo de dança do ventre na pista de dança, uma profissional ia lá. Estava expectante pela ocasião.
Acabei por, após o jantar, pagar todas as minhas bebidas durante a estadia, se bem que, devido à mudança de quarto no princípio da viagem, houve uma troca de contas, contas que não seria eu a pagar, nem o outro senhor que estava no meu quarto, anteriormente. Posto isto, juntei-me aos meus companheiros mais jovens que me acusavam de mentir em relação à minha idade, pois parecia ser muito mais nova. Ri-me. “Deve ser das roupas à camponesa, meus amores. Eu sou jovem mas mostro-vos o meu B.I.” E mostrei, eles resignaram-se à realidade, fomos em compasso lento para a discoteca e esperámos.
21:30. Começa o espectáculo. Uma rapariga nova, de atributos físicos apetrechados, arredondados e curvados, surge na pista. De nuances louras, beiças vermelhonas e com um fato branco brilhante e reduzido, a moça abanou-se, timidamente, à medida que três músicos se excediam nas suas capacidades. Acompanhada por um teclista, um percursionista e um tocador de pandeireta, os movimentos esquerda, direita, esquerda tinham uma expressão discreta e, digamos, pouco criativa. Conforme as notas se elevavam naquele tecido de meios-tons e harmónicos, a generosa cintura e dotada anca, movimentava-se, agudizando-se, formando círculos e pontadas certas e seguras, numa sensualidade pontual. Finda a primeira música, a dançarina saíu da pista, foi buscar senhoras para dançarem com ela. Ri-me. “Antoine”, um dos empregados do barco que tinha a sórdida mania de nos atirar gelo quando estávamos no terraço, perto da piscina, sorriu para mim, de bandeja na mão, sacudiu-se todo, abanando-se como uma mulher à procura de disputa. Apontou para a pista, querendo-me forçar a dançar para uma significativa plateia. Fazendo sinais à lourita, ela empurrou-me para a pista. Ele sorriu, satisfeito por ter cumprido a sua missão e, desta feita, eu e outras mulheres, dançámos em harmonia com aquela mulher, nos gestos, passos, voltas e agitares ondulantes. Mais uma vez, de sorriso aberto, acompanhava aquela egípcia, de olhos pintados e feições curvas, sobre a protecção de luzes coloridas e psicadélicas. Voltei a sentar-me ao redor e a apreciar um espectáculo que se acabou por revelar curto e fraco. Três músicas depois, a moça saíu.
Eram quase dez horas. Por volta das duas da manhã teríamos de ter a mala à porta do nosso quarto, para ser transportada para a camioneta. Até às três tomaríamos um leve pequeno-almoço no bar, seguindo para uma viagem de, sensivelmente, quatro horas até Abu Simbel. Comecei a pensar que não iria dormir, visto que teria de arrumar a panóplia de coisas que tinha, desalinhadas, no quarto e, também, desfrutar de tudo o que pudesse naquele último dia. Acompanhada, fui até ao quarto, atingir essa difícil e árdua meta de voltar a meter tudo na malinha mágica azul, de rodinhas ruidosas. Posto isto, e depois de entender que teria de levar tudo o que já tinha comprado, como a rababa e os papiros, em vários saquinhos, abalei para o terraço do cómodo navio, com as minhas recentes aquisições relacionais. Deitámo-nos, em espreguiçadeiras juntas e coladas. As moças do Porto encontravam-se na piscina, em gestos de diversão espontânea. Mas, logo, logo, ficámos quase sozinhos, a conversar sobre histórias surreais da vida e a contemplar aquele céu belíssimo. “Em portugal, não há um céu assim. Pelo menos, nada de tão iluminado por si mesmo, como se milhares de luzes distantes estivessem a invadir a atmosfera.” Comemos bolachas, dormitámos, por instantes, naquele cenário de paz de espírito, de uma inverosímil felicidade, apenas possível num sonho real de uma película. Os minutos passavam, assustados de si próprios e eu, consciente da unicidade daquele evento, abri, bocejadamente, as pálpebras finas, ergui a cabeça, senti a frescura do vento e desenhei o horizonte infinito na minha imaginação, marcado no decorrer da minha vida, saudando-o com um olhar brilhante, um sorriso mudo e um beijo ciumento.
Levantei-me e dirigi-me ao 211. Um “até breve” foi trocado e todos, isolados naquelas paredes íntimas, preparámos tudo para fechar o capítulo deste episódio marítimo em beleza. Troquei de roupa, refresquei-me. Incrível, não tinha sono, apesar de sentir o corpo pesado, cansado e dorido. Depois de ter todas as malinhas cheias, apetrechadas e organizadas, peguei nos sabonetes líquidos da casa de banho e guardei-os. Olhei à volta e tirei fotografias.
Estava pronta. Já eram quase duas da manhã. De mala e malinha nas costas, olhei em redor, à procura de vestígios pessoais, de objectos esquecidos ou escondidos. Ao meu olhar nada apareceu e, puxando a minha malinha, de sacos na mão e espírito de aventura, abri a porta, apaguei as luzes, fechei, devidamente, essa entrada, fixando a tabuleta do 211, fechando uma barreira física, desejável mas intransponível, esquecida, elemento de um passado listado e distante, porém, jamais incontornável perante o olhar acastanhado de uns olhos deslumbrados.