fevereiro 09, 2008

"Lacrimae Rerum"

Ela.

"Ana, és linda". Já tinham passado mais de cinco anos e ainda hoje aquelas palavras pareciam as primeiras e, ao mesmo tempo, as derradeiras, as mais importantes da sua vida, como se fossem dádivas da linguagem humana. O som saboroso, sussurrado e silibante proveniente daqueles lábios bem delineados e carnudos, desencadeava um entorpecimento dos sentidos que, até então, jamais havia conhecido.

De pálpebras cerradas, ela permanecia, impávida e serena, no mesmo local, mas tão determinada, que seria, para quem deambulasse ao seu lado, uma forte presença, um sinónimo de força inabalável. Indomável. Saboreava a brisa cortante, que empurrava grãos de areia para o canto dos olhos, e que rasgava a face lisa de pele aveludada. Apesar das mãos compridas e finas nunca aquecerem, o coração estava numa constante ginástica, feita de avanços e recuos, jogos de flexibilidade, em dose exagerada, que a transformam no expoente máximo da inflexibilidade. Os lábios finos já se queixavam, estavam secos, o calor apertava e réstias de suor colavam o top laranja às costas.

Ana. Abriu os rasgados olhos de avelã e presenciou a revolta da natureza. E tentou sair de dentro de si, mas o mar mostrava-lhe aqueles lábios. E tudo voltou, numa agonia indescritível: a perda, a solidão, a saudade, o amor que jamais voltou a renascer. Era um formigueiro, uma comichão que crescia a cada centímetro, ardia, doía, matava, moía. Uma lágrima desceu por aquela cara linda e, dez segundos depois, a figura incontornável da indomável mulher numa praia semi-deserta desvaneceu-se, dando lugar a uma criança frágil que fugia da vida.

Ele.

"Não sei donde vens, mas sei que o teu destino é aqui". A velocidade a que corria era frenética, mas ele sonhava, com os olhos a brilhar depois de a ter conhecido, com a lembrança daquelas palavras que proferiu, gravadas no seu pensamento.

"Olha, 200 mg de adrenalina, rápido, que está a entrar em taquicardia! Mexe-te!". O cabelo raspava no H2O circundante, ele lá corria no corredor, enfiado na bata semi-branca e os dedos das mãos robustas e possantes, delineados pela circulação sanguínea palpitante, saltavam à vista como peças de dominó em escada, numa agilidade mecanizada. "Já está!", proferiu, num som saboroso, silibante, sussurrado, proveniente de uns lábios delineados e carnudos.

Miguel. Os olhos verdes, cerrados e numa expressão grave, deixavam escapar muito mais do que parecia. Virado para o jardim do hospital, o espelho da alma perscrutava as sombras das árvores, à procura de um sinal dela. Da força indomável no olhar cor-de-avelã rasgado, nos lábios finos e rosados, daquela luz de presença naquele hospital.