abril 05, 2014

Desesperadamente procurando Nova Iorque (I)

No dia em que decidi marcar a viagem a Nova Iorque, sabia que o grau de risco era considerável. Apesar da cidade ser considerada bastante segura, não conhecia propriamente casos de mulheres que tivessem decidido viajar sozinhas para uma cidade tão grande, em busca de um não sei quê. Acalentava este sonho há alguns anos, especialmente nos últimos meses, desde que comecei a estudar representação. Tornava-se quase imperativo, na minha cabeça, ir a um local que fora (e era) uma inspiração tão duradoira para tantos artistas, realizadores e, claro, atores. Mas afinal que diabo tem Nova Iorque de tão especial para tanto dos eventos e happenings do Mundo se passarem lá?

A minha curiosidade traíu-me - pelo menos, às minhas poupançazecas - e ao bater das 12 badaladas, na passagem de ano, com 12 gomas em forma de ursinho na palma das mãos, repeti para mim mesma: "Este ano é que vou visitar Nova Iorque". Analisei, pesquisei, consultei alguns sites que relatavam o testemunho de outras mulheres que visitaram a cidade e cheguei ao veredito final. Fiz contas à vida, perdi horas entre soluções mais económicas e o acelerar de burocracias impostas pela sociedade norte-americana e voilá.

"Bling ringa. Na na na na naaaaa, na na na na na na naaaaaa, para pa para pa pa pa....". Eram seis e meia da manhã e o despertador fez questão de me brindar com a sua intransigência agridoce. O momento era aquele, o que tinha despertado bandos de borboletas em catapulta na mente, nos últimos dias, mas a noite agitada não me tinha brindado com as horas suficientes de descanso. 

O ritual da mala quase pronta, esperava por mim, depois do dia começar a nascer tristonho, sob a forma de um cinzento baixo e redondo. Depois de um duche revigorante e generoso, envolto num nevoeiro crescente, acelerei o passo, reforcei o meu corpo com uns cereais e fechei a mala, com ajuda e algumas mudanças geográficas estratégicas. As borboletas, por magia, tinham voado ou talvez morrido. Não é verdade que a duração média de vida desta adorável criatura ronda as 24 horas?

Precisamente o oposto do que se passava na minha cabeça. Uma excitação e adrenalina crescentes, mesmo com o cenário mais pobre para a recém chegada primavera portuguesa. Estava a milhares de quilómetros, mas a humidade das ruas geométricas, compostas por prédios intermináveis, cobridores do céu que nos faz sonhar, ilimitado, já pareciam uma certeza à frente dos meus olhos. 

Cheguei ao aeroporto sem sobressaltos, embora com o coração nas mãos. Uma viagem é sempre uma novidade, uma lufada de ar fresco, uma quebra na rotina que perdura, muitas vezes, há meses e anos. Das melhores dádivas da sociedade humana. Mas há sempre pessoas que deixamos, que amamos e com quem nós preocupamos. Não acredito e nunca acreditei no conceito do " desprendimento total e fundamentalista". Podemos levar a casa connosco, as imagens mais marcantes circunscritas com um arco-íris e um raiar de sol dentro de nós, mas deixamos sempre algo no sítio de onde partimos. E isso custa e magoa sempre. No mínimo, ficam memórias de pessoas com quem nos relacionamos. Se formos anti-sociais, os rostos das pessoas tão familiares que nos habituámos a ver no supermercado, as músicas e excertos de faixas que assumem papéis diferentes, por estarem associadas a específicas épocas, fases e sentimentos dos nossos fragmentos diários, o animal de estimação, que até pode ser o nosso único amigo, que aguarda sempre a nossa chegada ao lar com um olhar à bambi e uma lealdade inesgotável. Todos nós, mesmo os mais solitários, mesmo os mais frios e separados do pragmatismo da realidade, deixam algo. Parte de uma tela gigante, do tamanho do percurso da nossa vida. Mesmo que seja a preto e branco. Eu tenho pessoas que deixei e de quem vou sentir muito a falta, mas o que me magoa mais é a mágoa do outro lado. Proveniente da preocupação.

Caminhei para a fila do check-in com um sorriso e passada firme em direção ao voo 739 da United States Airways. "Senhora, é favor responder a umas questões por razões de segurança." Ah pois, já me esquecia da morosidade que é viajar para os Estados Unidos. Trezentas e milhentas perguntas depois, quando finalmente perceberam que não transportava droga, armas brancas ou de outra índole qualquer, la deixei a gigante Samsonite azul fugir na passadeira. E, passada meia hora, deixei fugir duas das pessoas mais importantes na minha vida. Sempre com um sorriso no rosto, um brilho de emoção nos olhos e um "até já" sussurrado. Agora estava por minha conta. E seja com que idade for, com 10, 20, 30 (e imagino que também aconteça aos 40), o desconhecido provoca sempre um medo, um receio, vá, que pode ser perigoso se for negligenciado. Se ignorarmos esta moínha, ela irá consumir-nos e apoderar-se de tudo o que controlamos (ou pensamos nós que assim é). Ao invés, permitir-nos sentir medo faz com que, mais cedo ou mais tarde - é uma questão de tempo - ele comece a deslizar. Perde força. 

Foi ao que fiz ao passar o controlo no aeroporto. Mesmo depois de ter sido revista e apalpada por uma jovem segurança de tez morena e sorriso desfalecido, um colega da mesma não optou pela calada. "Foi o relógio, sabe? Para a próxima... Quando tiver um relógio em aço retire. Já não apita". Ripostei com um tímido sorriso no olhar. "Pois, não fazia ideia. Obrigada." Compus a tralha e avancei para a porta de embarque em direção a Filadélfia: a escala inevitável que não tinha conseguido apagar do meu itinerário. Era isso ou uns quantos euros sugados a mais, que não me permitiriam investir noutras atividades de caráter lúdico-cultural.

E nesta caminhada interminável, em busca da Porta 42, em tudo se assimilava ao green mile, o corredor da morte. O destino parecia ser inatingível. Andava, andava, andava, em marcha rápida e parecia que já tinha dado a volta ao Mundo. Os olhares de viajantes espalhados pelo espaço remexiam-se curiosamente, num gesto minucioso de perscrução, à medida que um ligeiro sopro lhes incomodava a face no segundo em que o meu passo voava, mesmo ao lado. Para compor o cenário, algumas das lojas faziam querer abrandar-me, para regozijo da minha faceta mais materialista: fnac, Desigual, Victoria's Secret... Consultei os ponteiros do relógio. "Está na hora do embarque. Mexe-te rapariga." Deixei as lojas, com generosidade, para os viajantes desocupados e, no mínimo, com generosidade na carteira. E voei para um último interrogatório, no qual passei com nota 20. Acho que posso dizê-lo, visto que respondi negativamente a todas as questões de ameaça de segurança e tive tempo para repousar as órbitas num banco. Embora a minha vista fugisse para o avião, do outro lado da vidraça, e para alguns passageiros a metros de mim. 

"Don't treat on me." Li inscrito numa mala verde, como a dos militares nos filmes americanos, às costas de um rapaz de ar aquilino e olhar vago. Tinha cabelo curto loiro, olhos azuis, daquele tom felino-siamês, e a mente bem longe dali. Embora o porte atlético e a indumentária sugerisse um possível militar ou um aspirante a tal, também pelo emblema da bandeira norte-americana cosida à mochila. Patriótico, sem dúvida. Outro senhor, sentado a três cadeiras de mim, de semblante largo e pasta preta à executivo - no interior da qual podemos imaginar resmas e maços de dólares ou dezenas de sacos de droga de qualidade duvidosa - olhava em frente, composto pelo blazer preto que se tinha pendurado no braço e a caneta brilhante encaixada, tão desvincadamente, no bolso da camisa.

"First class passengers...". Começou a corrida, mas era fraca. Pareceu-me que pouca gente ia estar no avião e, de facto, não falhei. O meu lugar era à janela, mas os outros dois também. Ia viajar realmente sozinha durante sete horas e quarenta minutos. E, quando analisei a composição geral, percebi que esta seria mesmo a pintura. O que eu não esperava, de facto, é que nas minhas férias além fronteiras e atlânticas, desse de caras com uma figura pública no avião. A A. entrou com a sua figura, alta e sensual, suscitando logo uns suspiros e zunzuns. Até o assistente de bordo, que não deve ser o maior fã, distribuiu um baralho de sorrisos, tal como a diplomacia do trabalho exige. "Quer vir aqui para a frente? Fica melhor." A morena não fez questão, mas acabou por aceitar a proposta. E lá estava ela, a três filas de mim, com companhia e descansada da vida. Mal sabia que eu estava ali, de semblante sério, com a minha boina e cachecol roxo. Mas também era indiferente, não fazia questão de mudar o meu comportamento, por muitas estrelinhas que caíssem no avião. A ironia era gigante, mas não se comparava à minha vontade de usufruir cada segundo fora do mundinho tuga. Respirei fundo, olhei para a luz que entrava pela retangular janela e pensei, quase deixando sair som: "É uma passageira como outra qualquer. Férias. Nova Iorque." E sorri.

Ainda não eram onze e meia e já estavam a servir paparoca, a bem dizer um frango barbecue com feijão verde e puré de batata doce (uma perdição gastronómica que me tem perseguido em cada refeição). Um dos assistentes de bordo, com uma careca muito brilhante, e uns olhos azuis metálicos lembrava-me o líder da Companhia da série Prison Break. A voz era pouco límpida e, aparentemente, a simpatia também estava perra. Perguntou-me o que queria e eu contra-respondi com "Que opções é que tem?". Silêncio. Acabei por pedir frango e deliciar-me, também calada, todavia com motivos diferentes: uma lata de coca-cola zero num copo com uma pedrinha de gelo, uma fatia de bolo de chocolate, uma vista para o atlântico que me lembrava a maresia gélida de Porto Côvo e o filme de animação Frozen, a confortar os revirares de olhares mais desconfiados. Apercebi-me de que já era oficial: ainda agora tinha partido e já me sentia em casa.

abril 03, 2014

Desesperadamente procurando Nova Iorque (prefácio)

Toda a gente sabe que uma mulher normal dos dias de hoje - pelo menos aquela que é considerada como tal, sempre com muitas aspas, aspas - gosta de prezar e cuidar da sua imagem. Um ritual que, nos casos mais extremos, morosos e dolorosos, pode chegar a algumas horas diárias. Eu tomei várias resoluções e defini algumas regras antes de embarcar nesta viagem a Nova Iorque. Entre elas, não cair no ridículo de carregar todos os acessórios femininos tão desnecessários ( já para não falar pesados). Contas feitas, as minhas decisões foram:

1. Não levar secadores, alisadores, escovas XXL para efeitos de remover células capilares mortas e enterradas, levantar raízes ou fixar ondas XPTO, nem qualquer aparelho eletrónico relacionado com o visual e a estética. Todo o ano somos "escravas" da beleza. São as olheiras, as rugas, as imperfeições, as borbulhas e acne pós-30, o cabelo que não está esticado, nem com o volume perfeito. As unhas que estão ao natural e, pronto, não pode ser. Não fica bem, certo? Oi? Errado. Vou de viagem para conhecer, absorver, respirar novas sensações, emoções. Não para uma competição de moda. Quando me quiser pavonear com o kit completo vou para o Chiado ou para a Avenida da Liberdade. Agora é tempo de ser o mais natural possível. Limpinha, mas sem grandes arranjos. Observar e não ser observada.
2. Não demorar mais do que cinco minutos para tratar da imagem: maquilhagem, penteados, cremes para o rosto e ramificações afins. Para quê perder tempo com mais, do que com os mínimos olímpicos, se o objetivo é passar despercebida entre a multidão? Sentir-me confortável, bem preparada para horas de caminhada e passeio, não se coaduna com quinquelharias e adereços froux froux. Se não gostarem, olhem para o lado. Melhor será, é mais tempo que passo a observar a natureza de quem passa por mim e de tudo o que acontece no momento. Menos distrações.
3. Não me levantar nunca depois das sete e meia da manhã. Se vou para a cidade que nunca dorme não posso ficar na cama ou sentada à janela de casa a ver os táxis amarelos a passar. Para conhecer o ritmo biológico da cidade, tenho de o acompanhar, desde a sua génese. E quanto mais cedo, melhor. Mais experiencio.
4. As deambulações na rua não podem ser tardias, mas não há hora de recolher obrigatória. Se me apetecer ficar na conversa com a minha anfitriã ou a escrever ou a meditar, fá-lo-ei sem me penitenciar por isso. Estou de férias e a vontade que surgir de fazer algo nos " tempos livres" será aceite.
5. Não há regras. Fora todos os motivos já mencionados e descritos, a livre exploração de um espaço, rua ou recôndito recém-descoberto será sempre uma tarefa a abraçar, ainda que não tivesse sido premeditada ou prevista. Não faz mal, o inesperado e a aventura são amigos do viajante, mas inimigos do turista. Eu considero-me um mix, pois irei aos locais mais icónicos da Big Apple, não poderei deixar de ir ao topo do Empire State Building ou ao Strawberry Fields no Central Park, mas também quero ver o resto. Tudo o que está fora dos cartazes e catálogos de agência porque não é bonito aos nossos olhos, tão ligados com a categoria perfeição. Não é bonito de se ver, logo não é comercial, nem vende. Mas faz parte da natureza do local, é também o que o caracteriza e, como tudo na vida, tem de ser levado com seriedade e respeito. Quero ver tudo. Ser uma viajante numa ordem de urgência, em busca de tudo o que conseguir ver. Insaciável, em corrida pelo autocarro que já está ao virar da esquina, apinhado com pessoas perdidas, mercadorias com cheiro a século XIX e galinhas anorécticas e semi-depenadas. Quero entrar e arquivar na minha cabeça tudo o que puder.

Posto isto, deixo-vos estas palavras com a intenção de transmitir quaisquer eventualidades no decurso desta viagem, de uma semana, entre três e dez de abril. Sete dias apenas, nada de invulgar na linha cronológica, nem de inovador na era do tempo fugaz e conectado em rede, com o Mundo inteiro. O olhar sobre as experiências no decurso do mesmo é que é subjetivo e único. Não por ser especial, nem mais rico ou completo do que outro qualquer. É apenas o meu. Que será certamente diferente de todos os olhos, cada par com as suas ligações, percepções e curto-circuitos.

Até já, Nova Iorque.