fevereiro 12, 2013

Colisão frontal, eucaliptos e a dor da independência (VI)


Já era quase novembro, mas as árvores ainda tossiam com o arranhar quente que lhes vibrava na garganta. Lisboa deixava saudades, não porque estivesse longe do meu caminhar solitário, mas sim porque também ela iria mudar em breve. E, como toda a gente sabe, a mudança é sinónimo de transformação. É uma incógnita, o ser empurrado para o desconhecido sem saber se existe do outro lado alguém para nos amparar ou um colchão abandonado por  um vizinho da Colunex, desfigurado e deseintegrado da sua própria sociedade. Eu ainda não sabia se havia se tinha alguma destas opções à minha espera, mas estava à beira de uma prancha numa piscina, cuja profundidade e caráter são desconhecidas, e só faltava a ponta da coragem para saltar.

Até lá agarrava-me ao calor das ainda longas noites que insistiam em não sair. "Vais sair de casa, vais deixar os teus pais, vais fazer algo de completamente novo. Cuidado para não te arrependeres!" Sim, as altas temperaturas eram tramadas, autênticas filhas da mãe que, parasitas e indiscretas, se colavam à nossa cabeça. Tentadoras e sensuais por se contentarem com remendos de blusas velhas, mini-saias oréva e havaianas que se moldaram às curvas dos pés escuros calejados, depois de muitos dias de praia e de contacto direto com o sol. Era sinónimo de loucura, de prazer já conhecido e alcançado, de sabedoria e felicidade certa na nossa cabeça. Uma zona de conforto que me prende com algemas de chocolate, frutas exóticas e um gin tónico a destilar pela minha boca. Um êxtase de sensações enche-me a boca, coloreia a minha visão de formas psicadélicas à espera de serem agarradas, faz ondular os micro pelos escondidos nas linhas mais óbvias do meu corpo, mas estou presa. É uma luta  perdida, insuficiente. Inútil. Tal como a mudança de estação me assustava - sim, também porque não tenho paciência para camisolas e andar enchouriçada -, também a explosão na minha vida estava iminente. O que fazer? Fugir? Não. Vivê-la.

"Faíscas verdes. Sabem o que é? Vão saber, malta!". Abri os olhos e despertei para a realidade. Estavam no meio de uma sala cheia de pessoas, eram centenas que, tal como eu procuravam saber que diabo andavam aqui a fazer neste jogo chamado vida, e não se importavam de se misturar com desconhecidos durante intensas horas ao longo de um fim-de-semana prolongado, onde as trocas de cadeiras e os apontamentos eram o prato do dia. A sobremesa era a tomada de consciência, na maioria dos casos bem mais amarga do que doce. Seiscentas pessoas na sala Preto e Prata do Casino Estoril a ouvir um homem inspirador, conhecido por ser o guru do auto-conhecimento em Portugal. Sabedoria ou marketing? Honestalmente, provavelmente eram as duas, mas o que me importava era aprender mais sobre a vida, sobre o ser humano, sobre o ser com o qual tinha de viver todos os dias, desde que abria a pestana. E se o Dinis Só Nascimento podia abrir-me uma janela, eu iria querer descobrir a chave para abrir a porta.

"Está na altura de... trocarem de lugar novamente! Boraaa e nada de ficarem ao lado de alguém que conheçam, não vale!", desafiou Dinis, com a sua pêra bem desenhada e a sua voz segura, perante uma audiência manipulada. Agarrei na mala preta à tiracola, no bloco de notas, no pacote de bolachas abandonado aos pés e fugi daquela cadeira aveludada. Fugi com a preocupação de não esbarrar em qualquer-objeto-ou-ser-humano-ou-parte-de-ser-humano-além-de-prolongamentos-internos. Um lugar foi-me indicado, quer dizer, vi-o depois de um senhor de óculos e gargalhada jocosa desobstruir-me a vista. "Ena." Sentei-me e reparei na rapariga, de olhar triste, no meu lado direito. Desenhei um sorriso nos lábios e atirei-lho. Ela retribuiu, do baixo da sua cabeleira morena, com franja direita e pontas alinhadas três dedos depois da orelha. Parecia ter uma alma bonita, com a fragilidade feminina a boiar no seu rosto, mas a pele baça e amarela, tal como o fundo impercetível da sua irís fez-me perder o meu olhar. "Malta, próximo desafio. Em grupos de dois vão falar e trocar ideias. Qual foram os momentos altos deste ano? E os baixos? E quem é que mais amam e mais detestam? Porquê? Reflitam, escrevam primeiro para vocês e depois mostrem. Partilhem!" A "Beatriz Costa" do século XXI olhou para mim. "Como te chamas?", perguntei. "Ana Carolina", respondeu. "Olá, eu sou a Raquel. Vamos a isto?" Confessar os podres da minha vida a uma desconhecida podia não parecer fácil, mas o problema era admiti-los a mim própria. E andava agrilhoada há muito tempo, há demasiado tempo. Fui escrevendo, linha a linha, tópico por tópico, incrédula com a quantidade de coisas que teria de admitir. Senti uma pontinha de embaraço a crescer-me como uma onda, que de inofensiva e quebrada pela prancha deficiente de qualquer puto de três anos passou para uma potencial ameaça McNamariana. Pi, pi... pi, pi.. Uma mensagem. Interrompi a dura escrita e li a mensagem de um número que, de repente, não fazia ideia a quem pertencia. "Como está o carro? Já anda? É melhor não sair de casa quando estiver arranjado". Não escondi a surpresa. Era o M.