março 17, 2006

"Transpirações.."

" Ali se cruzou o meu passado com o meu futuro, sem saber onde estava o presente.."
Depeche Mode. Somebody.
Hoje tive aula de canto. Fiquei muito desmotivada, ainda no princípio da aula. Diga-se de passagem que a A. não foi lá muito justa comigo, eu nem tinha aberto a goela para nada, contudo, penso que a mudança repentina de humor da senhora, deveu-se ao facto de me pôr suficientemente preocupada para estudar umas duas horas por dia. Não sei se resulta, porque preocupada já eu estou há muito tempo. Ela diz que tudo é uma questão de trabalho..E eu pergunto: será assim? Será que podemos ser tão bons como fulano tal, que é o melhor do que faz, se trabalharmos arduamente, sem parar? Poderia um dia ser uma grande pianista, tão conhecida como a Maria João Pires, se vivesse apenas para tocar, dormir e comer? Será que conseguiria algum dia chegar à sua técnica, à sua elasticidades, à sua musicalidade, que muito dizem ser inata?..Não sei, meus amores. Mas acho que secalhar sim. Um desastrado total na música, pode deixar de o ser. A música não é só inspiração, rosas e romance, é muito mais do que isso. Aliás, posso até afirmar que tem muito pouco de lírico. É um trabalho duro e matemático, onde tudo tem de ser encaixado devidamente, notas que se amontoam, notas que temos de procurar e pensar, é um exercício mental muito desgastante. Falo por mim, que às vezes encalho em notas que não deveria. Mas sem superar as dificuldades, nada se consegue..
Hoje ia no comboio. Mar cinzento, tal como as pessoas na carruagem. Passou um pedinte, já habitual com o seu chapéu á detective. As pessoas olhavam, num misto de desdém com pena, querendo dar algo sem o poder, porque sentem que não podem, que não o devem fazer. "E nós? E os meus? E eu?". Há pessoas que tiram uns trocos e dão ao velho corcunda, de olhos azuis gastos e pera de um amarelo sujo. Cheirava mal, não deveria tomar banho há algum tempo. Olhei o homem, tive pena, como sempre. Já há algum tempo que não dou umas moedinhas a alguém que passa por mim. Já me habituei de tal forma a este tipo de situações que, geralmente, tenho a reacção fria e instantânea de ignorar, em grande parte, o que me rodeia. Viver em metrópoles, ou cidades, ou em meios populados de gente que nos é estranha, surte em nós este efeito, uma necessidade inequívoca de defesa, de isolacionismo. Choca-nos ver uma ou duas vezes, mas depois a rotina mata o sentimento de choque. De repente, é preciso algo mesmo fora do alcance da minha retina, para me poder chocar. Talvez por isso, quando voo para fora, quando alcanço outras culturas, atinjo outros estádios de vida, de espírito e, por conseguinte, de pobreza. Pobre homem. Vive assim. No fundo, se virmos bem, ele vive dos outros, vive à custa dos outros, na sua gabardina escura, na esperança de encontrar um novo remendo para as calças rasgadas ou de receber uma peça velha, com que possa usar para variar a sua estética física. Os anos passam e parece que não deixo de o ver. Há pessoas que passam anos nos comboios, à espera de algo que possa mudar as suas vidas, alguém que, sistematicamente, ignoramos, mas que, naturalmente, acaba por estar presente, fazer parte do quotidiano. Vemo-las todos os dias ali, diante de nós, como se fossem papel usado, uma peça que faz parte do cenário, algo que não nos transcende por ser natural. Mas, se deixassem de existir, algo mudaria, o décor já não era o mesmo, faltava o retoque, o pormenor que faz toda, toda a diferença. Ou seja, por mais indiferente que muitas daquelas pessoas nos possam parecer ser, elas estão como que entrenhadas no nosso ser, no ente que criamos e vivemos ao longo dos anos, ao longo da jornada da vida que, muitas vezes e pragmaticamente, só nos deixa ver o que nos apraz querer ver. L.
P.S. - É má ideia escrever no blog e falar com pessoas ao mesmo tempo no MSN, especialmente se forem de Farmácia e não tiverem mais de 21 anos.

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