março 29, 2006

"Ó tempoooo, volta para tráaasssss!"

"Um espelho que devia estar partido"
Olá amigos. Desapareci de novo, mas voltei, na tentativa de preencher um pouco dos vossos minutos com os meus segredos. Quer dizer, isto é uma treta do caraças, não vou divulgar publicamente os meus segredos, principalmente os íntimos, se bem que, diga-se de passagem, não são assim tantos quanto assim. De forma codificada, acabo por revelar aqui muita coisa..Mea culpa. Humpf.
Enquanto a merda do estágio não começa - e esta é a palavra correcta, porque já estou farta da situação - continuo a ir ao ginásio, continuo a suar que nem uma porca depois de 15 minutos no tapete, com corridas, muitas respirações bufadas e bochechas rosadas. Continuo a cantar, a preparar-me para a prova final daqui a uns meses e continuo a ler, a ter ideias, a ver filmes. Tenho saudades de ir ao cinema. Isso não tenho feito. Também tenho andado mais poupada. Sabe-se lá onde vou parar daqui a uns meses..
Acaber de ler o "Equador" e comecei já o "O Codex 632", de, um dos meus preferidos profissionais no mundo da comunicação e informação, o caríssimo José Rodrigues dos Santos. Foi como de uma tempestade tropical para o calor do deserto: é mais suportável, lê-se melhor, é mais leve. Em boa verdade, só estou na página 50 ou perto disso, mas as escritas são totalmente diferentes, apesar de ser indiscutível o elevado interesse que o "Equador" provoca. A temática é polémica e, a meu ver, muito actual. Como uma amiga me disse, "O tempo da escravatura ainda não acabou". E não acabou mesmo. Hoje as questões da pele, secalhar, já estão ultrapassadas - e digo secalhar, porque o nosso país, este Portugal pequenino, é dos países mais xenófobos, racistas e preconceituosos que já vi, algo que nunca tinha constatado com tanta evidência - e há outro tipo de estereótipos, de tipos sociais, de papeís que têm essa dignidade fascinante de substituir o preto chicoteado no óbó do Equador. A vida continuar a ser dura e longe de ser igual para toda a gente, esse lema da "igualdade de oportunidades" não é válido em lado nenhum, com muita pena minha. Nem aqui, nem na China. O marketing e a propaganda assolam o mundo, a estratégia tá em todo o lado e a ingenuidade descrita na literatura romântica francesa já não povoa o espírito de ninguém. Deixemo-nos de tretas, sim? É o que eu digo. Factor "C". Mas, mesmo assim, há que não perder esperanças. Analisar os terrenos, deduzir as hipóteses e encontrar uma via. A rápida, de preferência, com a portagem da honestidade. É pena as portagens dos dias de hoje serem tão caras. É uma tentação fazer corta-mato, não é?..Eu digo não. Ponto.
Vou voltar às minhas leituras e deambulações diárias. Deixo-vos o dia 2 da minha viagem ao país dos Faraós..Desta vez..com uma leitura mais espaçada, digamos. Cheers. L.
Dia 2 18/07/2004 Domingo

Luxor – Tebas - Karnak
Silêncio..
Trimmmmmmm..TiRiRi..TiRáRá.. O despertador toca.
“Oh bolas..Não dormi?!”
Era verdade..Tinha passado aquelas ínfimas horas a dar voltas na cama do meu 333, ouvindo os polícias na rua a falar o seu árabe, convulsivamente, perdendo por milésimas de segundos os sentidos, mas recuperando sempre, saindo do abismo do sono, perturbada pelo barulho desgastante e cíclico dos geradores, da sala ao lado.
4:45. 2:45 em Portugal. Great. Uma directa. Lentamente abri os olhos, sentindo aquele cansaço intenso nas pálpebras, um peso consternador nos glóbulos oculares, inimaginável. Levantei-me de repente, tentando despertar rapidamente.
“Lara, não podes falhar no primeiro dia.” Visto um top azul, uma saia comprida de algodão branca que, por muito que apertasse, me ia descaindo e coloco o meu lenço azul com pequenas lantejolas nos ombros. Refresco-me na casa de banho, mais desperta, sentindo aquele entusiasmo no corpo cansado da noite não dormida. Olho pela janela. “Ainda é de noite.” Pergunto-me porque nos mandaram levantar tão cedo mas, sem demoras, olho para o relógio. 5:00. Ok. Pego nas minhas duas mochilinhas, levo água, deito as sandochas do dia anterior no lixo e desloco-me até à porta do número 333, procurando a sua saída.
Caminho pelo estreito corredor, cruzando-me com algumas pessoas já conhecidas. Desço as escadas ensonada. Os “garçons” cumprimentam-me. Uns em francês, outros em inglês..O sono é bastante e o ar de zombie também, ligo o processador cerebral para mínimo e respondo sempre em português. “Bom dia.” Passando pela recepção, viro para a esquerda, desvio-me de um pilar para não esbarrar nele, desço as escadas e entro na enorme sala de refeições que me iria acompanhar na viagem.
A sala ainda estava muito vazia, poucas pessoas estavam já sentadas nas cadeiras almofadadas, comendo “les pétits croissants” e falando dos “barulhos que as impossibilitaram de ter uma noite descansada.” Pensei para mim, “Parece que não fui a única.” Deixo as minhas coisas no sofázito e busco pão, doce, manteiga..Um empregado ao pé do buffet pergunta-me “Feliz?”, pergunta à qual respondo, sem hesitar “Feliz mas com sono! Não dormi nada...” Curiosamente, quando o mocito percebe que fiquei no quarto 333 diz “Too bad..too much noise!” Finalmente, sentia que alguém me compreendia. Não é que, quando dissesse às pessoas que não tinha dormido nada, elas não compreendessem. Fora de mim afirmar tal coisa. A questão é que fazia MESMO muito barulho no meu quarto e não era “Aquele barulhinho de fundo.” No meu caso, era um barulhão incessante que, para além de ser chato por existir em alto volume, era repetitivo, sem cessar. Roinnnn..Roinnnn..Roinnn.
Decidi que ia pedir para mudar de quarto e foi, exactamente, o que fiz depois de tomar o meu pequeno almoço em tranquilidade com as três moças do Porto e um senhor que também viera sozinho.
6:00. Fui à recepção mas disseram-me que tratavam disso depois do almoço. “Ok, na boa.” Já estava a amanhecer. O céu era composto por uns tons rosas que ganhavam imponência e beleza com o decorrer dos minutos. Cá fora, fazia-se sentir um calorzinho agradável, pouco forte mas que denunciava, à partida, o calor que iria decorrer durante o dia. Lentamente, as pessoas se juntavam aos seus guias.
“Famiiliaa!”. Ana. Eu já estava no passeio, ao lado da escadaria, quando aparece a guia rechonchuda, de pele escura, cabelo preto preso e olhos delineados, procurando os seus filhinhos, com um ponteiro de professor na mão direita, estando atado ao topo deste um lenço laranja com outras formas, mal perceptíveis no meio.
Vê-me, junta-se a mim, cumprimenta-me com um sorriso que alguém denominou “semelhante ao da Fafá de Belém”. Simpática Ana.
O grande grupo vai-se aproximando e dividindo em quatro. Quatro guias, quatro camionetas, quatro grupos. Um mar de gente com bonés, óculos de sol, equipamento extraterrestre e chapéus de chuva, entravam para o seu respectivo veículo, quebrando, finalmente, a expectativa de se conhecer a antiguidade do Egipto.
E assim foi. Vislumbrei a beleza do céu rosado com o sol a nascer sobre o rio Nilo e as palmeiras ao fundo a contrastar com as montanhas áridas. Entrei na camioneta e sentei-me no fundo. A Ana falaria das nossas visitas: 1º, Colossos de Mémnon, depois, Vale dos Reis e das Rainhas, seguido do Templo de Hatshepsut e por fim, Templo de Luxor e de Karnak.
O nosso veículo arrancou. A condução meio descuidada não era muito propícia ao momento mas a beleza visível do Nilo fazia-me esquecer cada solavanco sofrido de 5 em 5 segundos. Bem, talvez não fosse tanto..mas andava por aí. O rosa estava a dar lugar ao azul, reflectindo a luz solar nas águas verdes do rio. Perto da estrada viam-se casas de muitas côres, muitas inacabadas com roupa estendida e rodeadas de terra, areia, deserto. Afinal, eram apenas as margens do Nilo que continham canais de irrigação, palmeiras e muita vegetação: a vida do Egipto. Mais de 90% das suas terras eram constituídas pelo calor do deserto, por dunas e montanhas sem fim. Mas essa era a beleza. Esse contraste fazia toda a diferença: um verde escuro e infinito, ao longo da costa, assombrada por curvas cremes, dando ao Vale do Nilo um exotismo, transportando-nos para outras eras e épocas. Ali podíamos viajar em sonhos, em pensamentos e voltar sempre felizes com o que tínhamos feito nos nossos pensamentos deambulantes. Constatei isto e percebi: ia ser a viagem da minha vida.
Colossos de Mémnon. Duas grandes estátuas perto das montanhas, onde se situa o Vale dos Reis e das Rainhas. Antigo, alto. Num mau estado de conservação mas bonito.
Vale dos Reis e das Rainhas. A antiga necrópole egípcia situada na marcante cidade de Tebas, um importante ponto na história da civilização das dinastias egípcias. A temperatura subia e a areia no ar também. Íamos em rebanho, seguindo o lenço mágico de Ana, visitanto os túmulos dos faraós e rainhas passadas. Tudo decorria na normalidade, com momentos de pausa em que a nossa bela guia dava umas explicações sobre o local. O que não foi nada, mas mesmo nada calmo, foi avistar abelhas do tamanho de grandes nozes a passar por mim. “aiiii..saiam daqui, suas macacas peludas!!”. Saquei logo o meu santo repelente e espalhei-o por tudo o que era sítio. Que alívio. Mas nunca mais pus os olhos em cima desse bendito repelente. Eu quero o meu dinheiro de volta..
História engraçada. Num dos túmulos de um príncipe, estava o seu feto com 5 meses. Pelo menos, acho que é isto. Em nenhum destes túmulos antigos era permitido tirar fotografias, como é compreensível, por uma questão de conservação das inúmeras paredes com os quadros em relevo e as suas escassas cores antigas. Ora, lá dentro o calor aumenta consideravelmente. Entrámos com cautela, pois o espaço era pequeno e estava protegido com vidro a toda à volta. Nessas paredes, observavam-se cenas em que o faraó e o seu filho, ofereciam aos deuses muitos bens. A deusa Ísis, o deus Osíris, todos eles estavam presentes nessa passagem importante: a entrada no mundo dos mortos. Todos os textos que tinham de ser lidos na cerimónia de enterro do defunto, encontravam-se esculpidos nas paredes com os milhares de símbolos hieróglíficos. Aves, ondas..Os cartuchos eram constituídos por estes símbolos, a escrita antiga dos egípcios e que continham a identidade do faraó, o intermediário entre o divino e o terreno. Mas..
Rewind. O cómico é que, quando me inclinei e aproximei para observar a múmia do príncipe, um simpático egípcio tinha uma mini ventoínha para refrescar. O que não foi nada simpático foi, logo 5 segundos depois, estender-me a mão e afirmar “1 euro”. “Ah..estes fulanos..”. Estranhei a ventoínha mas por momentos esqueci-me que, de 5 em 5 minutos, todos os egípcios nos rodeavam com um pretexto de ganhar pelo menos 1 euro. Sim, porque menos que isso não chegava para eles. Cedi, ofereci uns trocos ao senhor mas, visivelmente, não ficou lá muito contente. A frase do dia era sempre “1 euro madame.” Estamos num mundo cão, não é verdade?
Túmulos com résquias de côr, muito bafo quente e suor. Inscrições lindíssimas na parede que nos deixavam maravilhados, magnetizando os nossos olhos e os nossos sentidos. Ali sim, estava num mundo mesmo muito distante, anterior e magnífico.
Deviam ser quase umas 10 horas. Vendedores com as suas pequenas bancas, no meio do nada, com esculturas, lenços, postais, véus de dança do ventre e rolos de máquina fotográfica, rodeavam-nos, incessantemente. “La, la. Shokran”. Devem ter sido as palavras que mais proferi nesta semana. Homens com as suas vestes compridas e escuras, sinal de protecção do corpo, reduziam os preços das suas mercadorias à medida que nos afastávamos. “Not 40 euros, but 20!”. Sinceramente, não estava para aí virada, ía ter muito tempo para fazer compras. Parece que não fui a única a pensar assim. “Cabeças de Nefertiti há muitas!”, como dizia o outro. E a seguir..
Templo de Hatshepsut. A camioneta parou num ponto e a partir daí fomos de “comboiozinho à jardim zoológico” para esse antigo espaço de uma famosa rainha egípcia. Tantos turistas que passavam por ali. Nunca pensei encontrar tanta gente e logo, tão cedo. Mas eles não paravam de aparecer e estragar o fundo das fotografias. O que é que se pode dizer? Não posso vedar-me num raio de um kilómetro, pois nao? Talvez se estivesse ali o Bin Laden ao meu lado, piravam-se todos num instantinho. Havia uns quantos egípcios que se adequavam ao perfil..AhAh..que mázinha.
Mais uma vez, um simpático egípcio utilizou uma EAE. Estratégia Aproximação ao Euro. Infelizmente, não foi bem sucedido. Para além de ter oferecido os seus conhecimentos árabes para fabricar, quase instantaneamente, um turbante com o meu véu, ainda tirou uma fotografia. De novo, sofri de amnésia temporária mas quando o senhor proferiu as palavras mágicas, caí de novo na realidade. “Eles não são nada tímidos como os portugueses..”. Só me ria.
11:30. Esperámos que o resto do grupo tirasse fotografias e se juntasse para avançarmos no nosso passeio, regressando até Luxor.
O calor fazia-se sentir e o suor escorria pelas pernas, havendo sinais de alguma fadiga física. Não, isto não é para nenhum anúncio de fármacos ou medicamentos.
Apesar de algumas horas já passadas, a beleza do sítio fez-me querer continuar a procurar, a investigar, para encontrar mais raridades daquelas, algures escondidas entre uma palmeira e uma duna.
Avançámos na camioneta, de volta à nossa cidade, para observar os imponentes Templo de Luxor e de Karnak, uns quilómetros distantes um do outro. Paisagens lindas à vista de um sol forte e grande. Muitas palmeiras, centenas delas, eram avistadas da minha janela, todas juntas e unidas, decorando, sem fim, as margens ricas do rio Nilo. Canais de irrigação, faziam parte do cenário antes de atravessar a ponte. O rio Nilo. A força e vida daquela população, pobre e lutadora, que a cada dia sobrevivia com mais nada na alma do que a sua fé. Talvez não. Mas viviam como muitos não conseguiam viver. Era um povo forte e vivo. Com força de espírito.
Aliás, são ainda assim.
12:00. Templo de Luxor. Devem passar dos 40 graus. Calor. Um calor seco, suportável, mas desgastante para quem está a pé desde as 5 da manhã. Pior para quem não dormiu. Como eu. Roinnnn... Um obelisco enorme tapa a luz do sol. Tiro fotos e fotos. Maravilho-me com a perfeição das estátuas, grandes e antigas, que em tempos ostentariam uma magnitude: a imponência e poder incontestáveis do Faraó.
“ Que lindo”, pensei. Dezenas de turistas deambulavam entre as altas colunas, de belos capitéis e relevos circundantes, como se estivessem perdidas num labirinto com as suas máquinas, controladas pela beleza de um labirinto que queriam explorar e viver. Sentir. A alameda das esfinges era comprida e antecedia as duas grandes estátuas de Ramsés II na entrada. “Aa gênte sábe qui estê foi o faraóó maix mulherengue de todos us tempus. Tevi mais de 300 filios.” Sim, senhora, que contributo para a nação.
Templo de Karnak. Perto das 13:00. Fome, sede, cansaço. Vou à “cafateria”, como diz a nossa Ana, e compro duas garrafas de água. Uma delas, bebo freneticamente.
Tinha-se acabado a minha bateria da máquina fotográfica mas pedi ao senhor do norte para me tirar uma foto com a máquina dele, na Alameda dos Carneiros.
Maior do que o Templo de Luxor, em Karnak a sala das colunas possui mais de 300 daquelas. Grandes colunas que, em tempos, eram a vida do lugar, com inúmeras côres, feitas com os vários recursos que os egípcios retiravam das suas terras: folhas, lápis azuli..Quer dizer, acho eu.
Visita à sala das festas..E já alguém imagina os antigos sacerdotes a dançar à volta dessas colunas, todos de mão dada e perninha no ar, com as suas saias arrebitadas. Deve ser do calor..
Lago Sagrado de Karnak. Onde os sacerdotes se purificavam para poder realizar todos os rituais necessários. O grupo, por esta altura, está visivelmente esgotado, após tantas horas de caminhada, de pára-arranca, de exposição intensa ao sol. “Avança, Ana. Nós já percebemos.” Um templo sem fim, com um obelisco enorme junto à estátua do escaravelho que dizem dar sorte no amor, se dermos três voltas no sentido certo, ao contrário do sentido dos ponteiros do relógio. Criativos, estes egípcios. Um antigo jardim zoológico, num mau estado de conservação, aliás, num óptimo estado de degradação. As ruínas são imensas e o tal terramoto que aconteceu a 27 A.C. também não ajudou. Destruíu parte deste imenso templo e de muitas outras belas obras arquitectónicas egípcias. A natureza pode ser terrível, não é?
Mais uma história de esmola. Dentro de uma sala com colunas, neste templo, Ana falava do deus Amón-Rá e das formas que podia tomar, nomeadamente, como Amon-Min, representado com uma só perna nas paredes, tomando o símbolo da fecundidade e da fertilidade. O grupo saíu e eu fui a última a sair dessa mesma sala, ficando por momentos a olhar para as gravuras na parede, tentando imaginar como teria sido aquela imagem há milhares de anos atrás. Viro-me e caminho na direcção da saída. “Madame..”. Ok. Dou meia volta para trás e olho. Vejo um egípcio típico, de lenço na cabeça e a sua habitual roupa comprida, escura, a chamar-me. Chamava-me com um gesto, a sua mão queria-me puxar. Olhei, meio desconfiada, mas avancei, curiosa. Não fazia a mínima ideia do que ia suceder. Porque não arriscar? Era a única forma de perceber o que se passava. Mal não me ia fazer de certeza. Pelo menos, era o que o meu instinto me dizia na altura. Aproximo-me do senhor, que se encontrava junto à representação de Amon-Min. Ele pega na minha mão, toca por cima do Deus do sol e depois, repetidamente, toca na minha mão e na parede. “Ehlá, já fui abençoada por um Deus antigo.” Depois, no fim deste processo, toca-me no coração. Sorrio, acho piada. Pelos vistos, ele também achou piada ao facto de eu ter achado piada, e não demorou em estender a mãozinha para a esmolinha habitual, “1 euro”, uma grande fortuna para os egípcios. Mais uma vez, caí na esparrela..”hum, very clever..”. Sorri para ele, bem disposta e ele retribuí esse mesmo sincero sorriso.
Abalámos para o barco já passavam das 13:30 e a moleza começava a tomar conta de mim e do meu organismo. A fome já tinha vindo e ido mas trincava-se qualquer coisita.
Uma cabrazinha andava no meio das ruínas do templo e chamava por nós. Casais de mão dada, passeavam na rua. As mulheres com os seus véus, tapadas, caminhavam despercebidas. Ou não, pois esse facto, fazia com que olhássemos mais para elas. Os homens miravam, descaradamente, as outras mulheres, principalmente turistas que andavam de calções e de ombros descobertos.
As mulheres e as suas vestes. Esse factor era, deveras, interessante para a mente de uma ocidental. A mulher comum andava de véu na cabeça, vendo-se o rosto, mas em alguns casos só era possível alcançar os seus olhos. Nada mais. Seria possível para mim, em alguma situação imaginária e real, viver tapada, não podendo mostrar nem o meu ser exterior e físico, reprimida por leis religiosas e conjugais? Talvez. Neste momento, reflecti, quase como que instantaneamente sobre o assunto. A resposta é incerta.
Entrei no autocarro, no meu lugar habitual traseiro, em direcção ao “Beau Rivage.”
14:00. Almoço. O barco começa a andar e, enquanto desfrutamos do prazer da gula, olhamos pelas janelinhas no topo das duas paredes da grande sala, que ocupava grande parte daquele piso e observamos as palmeiras e as suas folhas em movimento, a caminhar, sem parar. Levanto-me, ligeiramente, para assistir com maior precisão ao espectáculo paisagístico que se apresentava diante dos meus olhos. Palmeiras de vários tamanhos..vegetação..O deserto, sempre o deserto montanhoso a proteger o vale do Nilo. O deserto. O verde. Um sem o outro não existem. Independentes, livres dessa oposição, matam toda a infalível existência de um rio, ícone de uma eterna música paisagística. O conjunto, a caixa, o aparelho, o visual: ofereciam uma beleza sem fim, uma metáfora que matava as grandes civilizações dos nossos dias.
Surpresa. As bebidas pagam-se à parte. Cada um pede o que quer e depois assina um recibo com a “encomenda” e, claro, escreve o número do quarto. Não pode haver enganos. Non, non monsieur. Hum...o quarto, é verdade. Lembrei-me que tinha de fazer uma operação antes de ir à piscina para uma banhoca.
Fim do almoço. Fomos até ao bar, claro, fomos conhecer o resto das instalações náuticas. Foi com alguma desilusão que percebi que a discoteca não passava de um círculo dentro do bar, com uma pilha de luzes psicadélicas em cima. “Oh, pode ser que com tanto espaço, consiga dançar como se fosse um pau de vassoura.“
O bar situava-se na parte superior do barquinho. O andar da recepção era constituído por dois longos e estreitos corredores alcatifados, com quartos de um lado e outro; por baixo, a salinha de refeições com uma W.C.; em frente da recepção, umas escadas que dariam a um espaço aberto com quartos de um lado, num novo corredor, a loja de roupa, “souvenirs” e ouriversaria; subindo-se umas escadas, ia-se para o quarto andar, com o bar, bastante grande à esquerda, uma nova ala de quartos; à direita passando a breve escadaria, chegava-se ao Convés Bar: o terraço do “Beau Rivage”, com uma humilde piscina de 52 metros quadrados, espreguiçadeiras para apanhar banhos de sol, uma parte coberta para tomar um cházito ou um bolinho e um chãozinho de relva artificial que escaldava cada dedinho do pé.
Fui à recepção. Encontrei Ana pelo caminho, que conhecia o meu problema do quarto e que me auxiliou. Levou-me ao quarto 211, no piso da recepção, ficando no interior do estreito corredor decorado com diversos quadros turísticos e orquestrado com uma música ambiente, árabe, mesmo ao lado daquela. O quarto parecia muito mais agradável que a minha “estreia”. Maior, com muito menos ruído, com uma casa de banho menos apertada e até, com um quadro na parede. Que bom, Ana. A tradutora de português-árabe, árabe-português deu carta verde para prepararem aquele quarto. Entretanto, dirigi-me ao meu 333 para preparar a transladação efectiva para o 211. Dito e feito.
Entrei no 333 e deparo-me com uma cena engraçada, que por acaso já tinha observado antes do almoço. Uma cobrinha feita com a capa do cobertor, da cama, por cima desta. A seu lado, um jarro branquinho com uma rosa. Artifical, claro. Se pusessem rosas verdadeiras, em todos os quartos, todos os dias, o negócio não devia render muito. Preparo a minha malinha azulinha com rodinhas e o resto. Ok, esqueci-me de duas garrafas de água no quarto, dentro do frigorífico. Mas agora é um pouco tarde para isso, não é? Não me lembrei disso e abalei, depois de me terem telefonado. “May I..?..”. “Yes, I’m ready. Thank You.” Segui o rapaz, que levava a minha bagagem, para o 211. Ali também tinham a mania de pedir gorgeta. Quer dizer, chamemos-lhe, hábito. Infelizmente, eu nunca me lembrava e a mão não ficava estendida por muito tempo. “I’m sorry.. Shokran.”
Que alívio. O sono pesava-me de uma noite barulhenta e de uma manhã muito, muito comprida. Contudo, sem hesitar, abri a malinha, procurando o meu bikini. Preparei tudo. Levei as minhas coisas “impossíveis de perder, senão estava frita”, o chapéu, os óculos, o protector solar. Deixei as coisas semi desarrumadas no quarto.
Abri a porta e tranquei-a, utilizando a chave presa a uma argola colada à chapa dourada, com o 211 inscrito. “Ai...”. Tinha alguma dificuldade em deixar aquilo mesmo fechado. Não conseguia fechar e, muitas vezes, também não conseguia abrir. Nunca percebi para que lado é que tinha de virar aquilo.
Rewind. Tinha visto os jovens com quem tinha falado no aeroporto e quando cheguei à piscina, eles já lá estavam. Travei uma rápida relação de à vontade e de sentida amizade.
O Nilo. Dentro da água morna e clorificada da piscina, observava toda a beleza única do rio. O exotismo prevalecia, o vento quente que nos rodeava. Uma feluca ou outra no rio, um transporte semelhante ao nosso, ao passar, que apitava. Senti-me tão bem que me esqueci de quem era ou de onde tinha vindo. A sintonia com aquela beleza, fez-me sorrir, fez-me descansar, repousar a alma de tudo o que tinha sido até então, de tudo o que tinha vivido ou visto. Ali, estava a viajar. A viajar pelo Nilo, um misto de sensações e sonhos. O verde, em determinadas alturas, parecia infindável, superior ao creme do deserto que mal se distinguia, nas suas formas dispersas. Mas não era assim.
Saí da piscina por instantes. Encostei-me ao corrimão do terraço. Imaginava como teria sido tudo aquilo há milhares de anos atrás. Imaginava uma população pobre, vivendo nas suas humildes casas de barro, cultivando e irrigando, protegidos com o forte calor e luz de Amón-Rá. A música egípcia. As cerimónias religiosas em templos coloridos, com tochas espalhadas. Os períodos de cheias e as secas que produziam guerras sem fim, conflitos entre as divididas regiões do Egipto. Um mundo tão longínquo, tão diferente, por certo, e tão perto de mim. Não me lembrei de nada que estivesse fora dali, que estivesse no meu antigo universo. Simplesmente, porque não tinha necessidade, não queria. A confortável sensação “lar doce lar” invadia-me a alma.
Sorri, olhando magnetizada aquela galáxia de beleza. Voltei para a piscina e diverti-me. Ri, falei, brinquei, estabeleci laços com uma data de estranhos que já pareciam ser a minha família.
18:30. Tínhamo-nos despedido de Luxor mais cedo para avançar para Esna, uma cidade complicada de atravessar, por causa das suas comportas que apenas deixavam passar um barco de cada vez. Tínhamos de chegar a Edfú no dia a seguir, para seguir a nossa interessante aventura. Avistei, ao longe, casas e prédios. Vestígios de uma pequena civilização. Mais. Muitos botes estavam ali, a aproximar-se de nós. Não percebi porquê na altura..mas não ia demorar muito tempo. As pessoas aproximavam-se do longo corrimão branco para espreitar os botes, povoados por vendedores egípcios. Botes rodeiam outros paquetes, os vendedores atiram roupa para os tripulantes. Gritam, falam numa vastidão de línguas, especialmente o espanhol. Aproximam-se de nós e esse ritual repete-se. Pequenos botes, com 2 ou 3 pessoas em cada, encostam-se ao “Beau Rivage”. Chamam por nós, gritam “Escucha!Mira!”, mostram vestes, túnicas compridas e de muitas cores. “Non te gusta? E esso?! Mira!”. Atiram roupas envoltas em sacos de plástico, freneticamente, tentam negociar aquilo que podem, numa energia espantosa. “Incrível, até comércio marítimo com tráfego intenso, existe por aqui.” Caramba, os fulanos não desistiam. Uma pessoa dizia que não..mas era a mesma coisa que abanar sim com a cabeça. Perguntavam-nos o nome, tentavam ganhar confiança, atiravam coisas para experimentar. Não consegui escapar, a este ataque tão curioso, mas não comprei nada. Se bem que ia precisar. A nossa “mãezinha” Ana já nos tinha avisado de um jantar especial, no dia a seguir, onde deveríamos estar mascarados. Não consegui esconder o meu entusiasmo. Uma festa árabe.
Depois de observar aquele cenário com interesse, retirei-me para os meus aposentos. Jantar às 20:00 e discoteca às 21:30. Ah pois. Ia-me divertir à grande e à francesa.
Hora de jantar. Faz-se ouvir um anúncio com a lista de actividades para o dia seguinte. Ida de Charrette até ao Templo de Edfú..passagem pelo mercado para compras..almoço..Ida ao Templo de Kom Ombo..Jantar e festa egípcia! “Um dia interessante”, pensei.
21:30. Procuro os meus amigos da piscina mas não os encontro. Dirijo-me para o bar com o resto da equipa. Sentamo-nos e esperamos que cheguem mais pessoas. O D.J. põe música. Pouco apelativa aos sentidos e às pernas. Mais tarde, falo um pouco com ele. Chegam mais pessoas e os meus amigos da piscina. Convenço-os a dançar. “Bora pessoal”. Um grupo de pessoas mais velhas junta-se a nós. Danço, danço e danço sem parar ao som de “Saturday Night” e outros. Durante um par de horas, esqueço-me da noite mal dormida e do sono. Sou levada pela dança de transe, que me contagia, voltando só ao quarto por volta da uma da manhã.“Great..”. Tomo um duche rápido para limpar o suor do corpo. Preparo o meu vestuário, as minhas coisas e enfio-me na cama, ciosa de algum descanso, procurando o aconchego da almofada baixa, deixando o peso, aparentemente, fino das pálpebras se sobrepôr à excitação da mente.. Roin..Roin..Zzzzzz....E assim foi.

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