junho 15, 2012

Colisão frontal, eucaliptos e a dor da independência (V)

Tic tac. Tic tac. Nada mais era permitido ecoar, entre aquelas quatro paredes, para além da minha voz e do bater dos ponteiros do meu relógio de pulso, tao audível que fazia tremelicar qualquer formiga esfomeada, por cima de uma migalha de comida, de arte ou de algo mais, fosse lá o que fosse, algures perdido no tempo, jazido no soalho.

Diante de mim, com o cabelo grisalho vistoso, ainda que desalinhado, o M. escrevinhava, num esforço inesgotável, para acabar finalmente com a parte morosa da burocracia, deixando escapar um ar macambúzio e gelado, os olhos fixos no papel - que, em boa verdade, nada era senão mais um elemento ocioso, através do qual se protegia - e o lábio inferior virado do avesso mas severo, como uma criança amuada à espera do doce que não chega. O nariz, ligeiramente abatatado, não era excessivo na proporção da face, ao invés, transportava uma certa jovialidade cómica que transmitia um fervor para os dedos, ansiosos e irrequietos para lá chegar e brincar com o órgão do olfato. Porém, o que me despertou, naquele momento, foram as mãos. Dedos grossos, calejados e fortes. Dedos de quem trabalha, de quem pensa, de quem resiste. Dedos que transportam força, ainda que camuflada por tanta doçura. Pensei na bela doçura que aquelas mãos poderiam dar e o calor que poderiam fazer sentir. Todos podem sentir o que quiserem dentro de si, mas poucos podem expressar e concretizar essas emoções, carregadas pelos mistérios do cérebro. Aquelas mãos destilavam amor, carinho, força e integridade por cada ruela daqueles poros velhos. Não eram bonitas, não eram suaves, mas carregavam a natureza da vida.

Enquanto o destino me prendia àquela cadeira, desenhada com veios de uma densa antiguidade, perscrutei ainda mais aquela expressão solitária enrijecida pelas linhas do rosto, traçadas pelas partidas que surgiram desde o seu nascimento. Definidas pela reviravolta da ampulheta do tempo que, implacável no compasso do seu andar, com o derradeiro escape de cada grão de areia, não consegue provocar indiferença por onde toca. Acontece, mas não pára. Perdoa-se, mas não se esquece. Esquece-se o passado, mas influencia-se o futuro. Ou, se trocarmos as voltas às lógica do otimismo irracional, colocando o realismo na linha da frente, o tempo cria cicatrizes na nossa alma, irreversíveis, mas cujas feridas lambemos como cachorros indefesos, como se fosse a suprema cura para alcançar a vitória frente ao próximo male. Só que o próximo male tem por hábito ser maior e atingir no mesmo sítio da massacrada ferida.

Ring ring. Despertei da minha investigação com um toque constipado de um telefone bege, outrora escondido por livros, capas rijas e cinzas de tabaco, que transformavam a mesa num objeto de decoração de um café noturno. "Está? Sim, não há problema... Sim, claro." O que antes parecia ser um silêncio ensurdecedor, transformou-se praticamente num recital de poesia, com a voz forte, rouca e densa do M. a preencher as lacunas da sala, com uma dança de sorrisos com os olhos. Timidamente, comecei a rasgar o meu sorriso, não por causa da conversa - irrelevante e banalíssima -, mas pela impaciência infantil com que M. estava a lidar com o assunto. "Obrigada", atirou com firmeza, devolvendo o auscultador do telefone ao descanso, com aquela firmeza que, tantos dias depois, viria a ansiar reencontrar. "Está tudo bem?", experimentei. "Sim. Bem, sabe como é... confusões." Num discurso inflamado, contra as injustiças da sociedade, M. deu vida a mais um cigarro, mais um ponto alaranjado iluminou aquela sala com tanta escuridão, enchendo o metro e meio que nos distava com fumo que se amontoava e apalpava, tais eram as chupadelas que dali retirava. Se aquela voz enchia a sala, uma personalidade carismática e determinada começou a chegar aos meus olhos. Ainda que, até então, fosse parco em palavras, a extroversão, rara e quase considerada pela sociedade inadequada para um homem com mais de 40 anos, começou a ressurgir. E lançado o mote, não resisti. "Fuma aqui dentro porquê?! Sabe que não se pode fumar em locais fechados... e está aqui um pivete...". Manteve a postura séria, sem desarmar a expressão e frio replicou: "No meu gabinete mando eu. O gabinete é meu, trabalho aqui, portanto eu faço o que quiser, inclusive fumar." Não respondi, nem ousei. Lancei apenas um sorriso, e com sucesso, não tivesse o M. feito um convite com os seus olhos redondos e grandes, que lançaram faíscas de dor, durante aquele quarto-de-hora passado.

Ouviam-se, por certo, a largos metros de distância os nossos passos, dada a pouca afluência de alunos por aqueles corredores amarelados, com pinturas, mini-esculturas e peças de olaria a colorir a neutralidade das paredes. Como uma discípula, seguia a figura do M., que se tinha oferecido para me mostrar os recantos mais interessantes da universidade. Afinal, eu era uma entusiasta de história, de arqueologia e de arte. E nem a situação constrangedora em que nos cruzámos, graças aos misteriosos desígnios da vida, ditaram a expulsão da minha figura daquela sala de fumo, nem o fechar a sete chaves do capítulo do choque frontal na A5. Um choque de titãs. De duas almas fortes, mas com o coração em sobressalto. "Agora vou-lhe mostrar a minha sala favorita", advertiu, deixando o sorriso amarelado, desenhado com o toque persistente da nicotina, aparecer à luz do dia. Assenti e passei por uma porta, descendo meia-dúzia de escadas de pedra, com uma imagem esplendorosa a apoderar-se do meu raio de visão. "Uau", deixei escapar, com a ingenuidade de uma criança, espantada pela conjução de cores, odores e misturas históricas que se ergueram naquele instante. Dos passagens estreitas, inertes como a estrutura de um hospital, rebuscadas com pedaços de arte, saltei para uma fonte de inspiração, onde qualquer sonhador, artista e filósofo adoraria passar horas, numa comovida sensação de fazer amor com o universo, com o mais belo que há. Um estímulo sexual aos sentidos. Naturalmente, não fui exceção.

À nossa volta repousavam estantes, dezenas, centenas talvez, que cercavam toda a sala, quadrada, como muralhas de uma cidade medieval. Centenas de documentos, livros, portfolios e fotos, numa junção proveniente de uma dose elevada de loucura e também de coragem, davam o cunho histórico de uma biblioteca secular. No centro estavam uns estiradores, em forma de U, com cadeiras, que reforçavam os contornos acolhedores da sala de aula. Pincéis adornavam as mesas de trabalho e resquícios de tinta, bem como o seu cheiro, marinavam entre as paredes, gastas e escuras, fundindo-se com o bolorento odor do estuque. Pelo ar caminhava ainda o aroma a papel velho, a pensamentos queimados, uns quantos que terão ocorrido, em comunhão, numa salutar conversa entre alunos e professor, sobre princípios cujos fins ainda não estavam traçados. O que me fez recordar, num ápice, os tempos em que desejava pensar, porém com forçada atenção, naquelas mesas viradas para um crucifixo, em cima do quadro. A diferença é que, então, tudo parecia automatizado, à semelhança da minha vontade de estar naquelas aulas. Ali, tudo é natural, espontâneo, desejado e vivido até à máxima glória. Não precisei muito, apenas escassos segundos, para ter a certeza: o M. era um excelente professor e, principalmente, um excelente formador. O carisma, o sarcástico sentido de humor e aquele amor, camuflado por uma aparente frieza, mas real insegurança, eram os ingredientes perfeitos. Senti uma pontinha de inveja daqueles alunos. Será que ainda me podia permitir viajar, como uma jovem de 20 anos, trancada para sempre naquele éden intelectual, sem receber contas, despesas e responsabilidades estúpidas de um adulto típico, ou seja, sempre aborrecido de si próprio?

"Este lugar é excecional...". Aqueles olhos firmes voltaram a focar-se em mim, mas com alguma admiração, em vez de uma incontrolável raiva pelas decisões que o fado lhe trouxera como oferenda."É, não é?". Sorri, rendida. Caminhei, abraçada à humidade claustrofóbica da sala, apreciando cada segundo de cores, pinceladas, peças arqueológicas que o M. me mostrava e que tanto calor no coração me despertavam. Entre as explicações sucintas daquele homem - que as Estradas de Portugal tão amavelmente me haviam apresentado - e a catarse que os elementos causavam no meu corpo, vislumbrei umas estreitas escadas de madeira no lado esquerdo, quando estávamos virados para a porta, junto ao canto. Havia uma passagem para um segundo nível. Acima das prateleiras que me beijaram os olhos, quando ali surgi, estavam mais uns quantas, à primeira vista, abandonadas. "Que teto alto", julguei. Ao meu lado, M. sacava mais um cigarro, perante o meu olhar de espanto, antes que se transformasse numa reprovação silenciosa. Pouco tempo demorou, na realidade, tal como a minha permanência na sala mágica.

"Tenho de ir", atirei, triste. "Está a ficar tarde e estão à minha espera. Mas gostei muito desta visita... e desta sala." O M. sorriu, com o seu ar altivo, erguendo com orgulho um cigarro que me entontecia. "Quando quiser, pode aparecer", despachou, num discurso rápido, como se o medo pudesse impedi-lo de pronunciar aquelas palavras. "Obrigada, sim. Gostava muito de assistir a uma aula." Despedi-me do inebriante festival de elementos, virei costas e caminhei até à saída. Mas, naquele momento, não estava somente a virar costas a um edifício, mas a uma pessoa. Era uma despedida que, estranhamente, não queria celebrar. Deveria e poderia. Era o fim de um ciclo, o arrumar, em definitivo, a novela do meu carro, machucado, à hora de ponta, na pontinha de Lisboa. Não era isso, porém, que sentia. Era o fim do contacto com um homem diferente de todos os anteriores e que, talvez por isso, me tinha injetado no coração uma esperançosa luz. Confusa, nos labirínticos corredores, nunca deixava murchar um sorriso jovial. A cabeça não parava, como uma escada rolante em modo turbo, mas o esgar dos lábios, em forma de coração, não se apagava.

Calor. Luz em modo ecológico. Ressurge Lisboa, na sua beleza histórica, perante os meus olhos, com um elétrico amarelo a trilhar uma perpendicular vizinha. O inevitável adeus a espalhar charme. Seria a derradeira despedida? M. furtou mais um cigarro de um "não sei quê" bolso dos jeans azuis cansados. De pé, aspirava aquele prego do caixão e uma proeminente barriga despontou sob a luz da cidade. Agradeci, com um nervoso miudinho a trepar pelo estômago até se instalar, confortavelmente, na garganta. "Até um dia destes". Ele, escondido pela trepidação do fumo, tinha adquirido a proteção perfeita para se esconder da rutura. De fisionomia séria, esboçou uma despedida com os beiços, num gesto de aparente indiferença, como se nada fosse, como se o cigarro fosse a sua única amiga e amante, a sua única companheira, por lhe ser eternamente leal, mais do que fiel. Olhei. Lancei mais pensamentos através da mente do que com a fala, por uns breves segundos, até o alarme do "já chega" tocar e alcançar-se a fronteira do impoliticamente correto e bizarro. Sorri e virei costas, deslizando e empurrando o cortinado dos meus cabelos escuros compridos, por aquela rua, agora parecendo-me ainda mais preta do que tudo o que carregava, dentro de mim, até lá chegar. E assim, desliguei, esqueci, apaguei. Desemboquei noutra esquina, composta por uum arco-iris fabricado de uma feira popular, para me distrair dos momentos do tão fresco passado. Não por temer nada do que aconteceu, mas pelo temor do tudo que nunca poderia vir a acontecer.