junho 09, 2012

Colisão frontal, eucaliptos e a dor da independência (II)

Já era noite cerrada. Ainda sentia aquele arrepio que o meu sistema nervoso me tinha enviado. Devia ser uma espécie de presente de aniversário atrasado ou - visto que a bondade abunda por estas alturas - algo que fosse similar a uma oferta natalícia adiantada. Porque não, né? O M. por ali estava a acabar de preencher a declaração que eu, atabalhoadamente, não conseguira. Foi, por esses segundos arrastados, que comecei a analisar, discretamente, aquela figura, utilizando a minha timidez pueril como disfarce. Quase parecia uma criança perdida aos olhos de um mero mortal. Mas não passava de uma rapariga assustada protegida por uma vergonha cozinhada com stress, agressão e um cheiro a eucalipto que me dava comichão. Estava todo vestido de preto, como se fosse um adepto ferrenho de motas. Na realidade era um fã de motas, mas não fazia parte daquele gangue com longas barbas grisalhas, lenço na cabeça e brinco na orelha, a ganhar ferrugem há quilhénios. "Vocês que andam em carros, parecem sardinhas enlatadas", gozou, com os olhos semi-cerrados, gozando da confusão alheia. Era de outra estirpe o M. Mais baixo do que eu, com um farfalhudo cabelo grisalho com ligeiras reviravoltas nas pontas, revelava ser um autêntico pirata do tabaco, com o constante buscar de um cigarro para confortar a alma. Uma espécie de compra por impulso, com os danos colaterais de se ter uns pulmões mais negros que o pior dos mercados. Sempre com um cigarro ao canto da boca, a sua voz era forte, com um timbre de roquidão sensual. "É o que dá fumar tantos cigarros", pensei. Sem dúvida era o tom com que se dirigia e comunicava que fazia toda a diferença. Tudo o que dizia transformava-se numa interrogação, cuja resposta seria uma incógnita. Mesmo que a dêssemos, ele replicava com uma pergunta e a nossa mente, intuitivamente, respondia: "este homem é um ponto de interrogação". Nesse dia não percecionei com a devida profundidade tal caráter enigmático, mas percebi, a posteriori, que aquele senhor superava os limites da generosidade, na era esmagadora do egoísmo. Afinal protegeu-me, com notável desapego, mesmo depois de ter sido vítima de um acidente de viação. Protegeu-me. Protegeu naquela sua concha, uma armadura de aço, a agressora da sua integridade física. Como se lhe pertencesse, como se fosse um prolongamento de si mesmo.