junho 09, 2012

Colisão frontal, eucaliptos e a dor da independência (III)

Saltos altos, leggings e um estilo pin up demasiado quente para a noite ventosa que se estendeu sobre a bomba de gasolina da estação de serviço.

O negrume já havia ultrapassado o meu estado de espírito. Cobria, num rompante guloso, todo o alcatrão e todos os vestígios de movimento em redor, exceção feita para as minúsculas luzes aceleradas que, paralelamente, serviam de fogo-de-artifício às nossas expressões graves. Dezenas, centenas, milhares talvez, de carros assinalavam um desfile de tubos de escape e pára-choques urbanos, rápidos como foguetes, cujo destino parecia até ser incerto para os condutores dos mesmos. Um espetáculo de luzes que se cruzavam e entrelaçavam, como se a luz pudesse ser uma opção naquela altura, em que o frio, mais do que o medo, provocava um tilintar nos pés irrequietos, a pele de galinha e uma estranha sensação de vazio. Seria o meu carro tão vital quanto um amigo, um familiar ou simplesmente uma pessoa que me faça crescer num gesto escondido pos verborreias mentais?

"Bem, está tudo tratado, mas não a deixo sozinha. O melhor mesmo é chamar um reboque...", atirava seco M. "Persistente o sacana", contei a mim própria. "Hum.... não, deixe estar, já estou perto de casa. Vou tentar ir até lá", respondi-lhe. De cigarro no canto da boca - mais um maravilhoso exclusivo num anoitecer pré-outonal -, arregalou os olhos, retirou o cigarro com o polegar e indicador destros e fez-se entender perfeitamente, ainda antes de silabar seja o que for. "É melhor chamar um reboque... o motor pode gripar e depois é bem pior, o radiador está só a deitar água. Tem a certeza que não quer um reboque?!" Nem disse muito mais. "Não." Matou o cigarro com uma só pisadela impiedosa da sua bota escura de chumbo. E atirou um "Vamos lá."

Quinze minutos depois. O pior havia acontecido e eu, no meu desespero disfarçado pela altivez feminina da minha indumentária sexy, não queria baixar a guarda. Mas o M. tinha sido O profeta. Uma espécie de adivinho das duas rodas, com a sua roupa de um preto uniforme, indiferente e desligada das modas que faziam o mundo - e o dinheiro - girar, eternamente, como dados a rebolar para a fatalidade de uma roleta num casino. "A temperatura aumentou e temos de esperar... Mas agora parece que está mesmo difícil", afirmei, com os lábios paralisados. Os olhos, redondos e castanhos, fixavam-me sem dó. "Eu bem te disse", falaram. "Pois, ok. A carteira é surda...", respondi com um risinho seco. Estava só, apenas com o meu orgulho frio e desapaixonado, numa berma de estrada. Optei por recorrer a um amiga, aquela que me ajudou a libertar-me, nos meus 28 anos.

Sim, tinha 28 anos quando a minha vida mudou. Mas ninguém disse que foi fácil, pois não? Crescer dói que se farta. "M.J.? Desculpa... Tive um acidente na A5 depois de termos estado juntas... Vens para cá? Obrigada, querida. Até já." Baixa, de pele clara, rosto arredondado e uma voz pueril, não tardeu em aparecer. Instante em que o meu Twingo parecia andar. E, subitamente, não havia motivos para ele, o meu protetor, poder ficar. Estarava tudo resolvido, bastava o seguro entrar em ação e pagar os danos materiais. Da minha parte ainda teria esse problema para resolver. Era altura de enfrentar as feras e seguir em frente, como sempre se fez e sempre se fará. Despedi-me da voz arranhada e da aventura personificada num arqueólogo, com rasgadas linhas de sarcasmo que o tornavam tão charmoso aos meus olhos de menina-mulher. Ainda não o sabia, mas o reencontro já havia sido traçado.