junho 11, 2012

Colisão Frontal, Eucaliptos e a dor da independência (IV)

Era um velho dia de setembro, mas um calor estonteante bafejava-me o rosto sem mostrar quaisquer sinais de misericórdia. E mesmo que o choque, das recentes horas, insistisse em martelar-me na memória, à semelhança do embate do meu pára-choques a uma Suzuki preta, empoeirada pelo sabor a eucalipto do crepúsculo, um campo de borboletas decidiu rebentar dentro de mim e o meu corpo quase levitava, embora a lei da gravidade conseguisse provar, como sempre, o oposto.

Afinal não tinha arrumado o incidente de viação numa gaveta, com direito a tranca, cofre e urna dourada. Não. Dias depois, o M. ligou-me e informou-me: "a declaração amigável tem um erro nos dados." Enfim o reencontro. Por último, o contacto fora daquele cubículo chamado "sala de acidente na A5". É a mesma coisa que uma sala de espera de um dentista ou de um ginecologista, na qual o constrangimento natural supera a natureza da alma mais genuína. A música mastigada por dois acordes manhosos, revistas (re)mexidas com cantos polvilhados de cuspo e impressões digitais com odor a ranço ou os sofás que sobraram da última edição do Stock Market. Tudo isto em conjunto com a hipótese da televisão com 20 anos estar sintonizada nos programas da Júlia Pinheiro ou da Fátima Lopes desenvolvem as condições - necessárias, logo, perfeitas - para que os presentes se atiram para o fenómeno da "não comunicação" de cabeça, soprados pela autoridade sublime de um deus chamado padrão cultural social. Caso contrário, serão punidos. Um sorriso ou um gesto dessincronizado do todo o poderoso, invisível mas presente naquela esmagadora sala, pode dar azo a um olhar ou sussurro, assombrosamente, esmagadores.

Assombrada continuava eu pela beleza de Lisboa. Estava a passos largos da universidade onde o M. lecionava e, portanto, a uns minutos de conhecer mais sobre a personalidade daquele homem ou de contactar com o habitat de um verdadeiro animal da estrada. O sol ainda raiava bem alto e com um brilho nos olhos, talvez devido ao grito de revolta dos meus 28 anos, que me deram a provar o acanhado sabor a independência, avancei com o cortinado preto formado pelas linhas paralelas e simétricas do meu cabelo, acarinhado pela suave brisa. A cor da pele, a roçar o guloso caramelo, fazia-me confundir com uma turista ou uma trauseunte oriunda de terras latinas, mas o ar ansioso e as passadas firmes deitavam por terra a hipótese de ser uma mera diletante estrangeira, apaixonada pelos mistérios de Lisboa. Cheguei. Respirei fundo, coloquei a mão no interior da mala branca à tiracolo da Gola e confirmei que tinha tudo: carteira, telemóvel, chaves, estupefacientes... ups. Bem, tinha umas gomas no fundo do saco. Dei um passo em direção ao topo do degrau da porta de entrada e pousei a sola da sandália à moda dos gladiadores, castanha, com tiras e fivelas, em solo firme. "Sabe-me dizer onde é o gabinete do Professor M.?" Um porteiro negro, de óculos estranhos e postura hirta, olhava-me como se fosse um E.T. Deu-me as indicações e bati à porta, sentindo os efeitos do calor, passados despercebidos pelas calças de ganga, com gotas de suor a escorrer pelas articulações das pernas "Entre." Obedeci prontamente.

Um aroma, enjoativo e intenso, a tabaco inundou-me os orifícios nasais, de imediato, à medida que observava o caos espalhado naquela sala, como se um furacão tivesse pernoitado por lá, antes de atacar uma povoação inocente das caraíbas. Dezenas de livros espalhados, por aqui e ali, quase como se fossem frutos apodrecidos, esquecidos após a colheita. Um piano vertical, velho e murcho, estava encostado à parede direita, como se de um abat-jour dos chineses se tratasse, sem direito ao simples auto-respeito, tapado pelas camadas de pó e o peso do tempo, que quanto mais depressa flui na linha cronológica, mais cicatrizes, dor e mágoa impreme às coisas. E aquela sala estava carregada de perdição, de tristeza e desilusão que atiraram a mais bela das artes à superfície interna daquele buraco, para a transformarem em panquecas, sensaboronas e insípidas. E com um perfume de tabaco. Vislumbrei o M., curvado sobre a secretária, proporcionalmente baralhada a tudo o resto, e cumprimentei-o. "Olá." Ele levantou ligeiramente a cabeça, depois ergueu-se e apertou-me a mão, sem me fitar nos olhos. Delicadamente, ofereceu-me uma das duas cadeiras à sua frente, mas sem perder tempo. Mais uma vez, executei tudo como mandam as regras. Mas o ambiente, tão cáotico quanto genial, despertou-me a curiosidade. "Toca piano?" Um inesperado olhar assustado, tão forte e tão curto, foi atirado na minha direção. "Sim, em tempos. Noutros tempos, toquei. Quando me dava prazer, quando podia e era feliz." Uma flecha atingiu-me. Não esperava, de todo, aquela resposta e a minha tendência para querer decifrar aquele mistério aumentou exponencialmente."Que giro. E porque parou? Adoro música, é uma das minhas paixões. E também tive aulas de piano há uns anos." Alternando entre a reta final do preenchimento da maldita declaração amigável e um olhar de súplica por paz, a nossa interação tornou-se um crescendo de uma sonata, oportunamente, de piano. Começou inaudível, mas o compasso final rebentou com êxtase.