junho 24, 2006

A vida num segundo

Corria, num frenesim espaçado, à procura do destino a poucos palmos de si mesma. Arfava, transpirava, sentia os lábios ressequidos e a frescura do perfume a evaporar-se pelo ar pesado e urbano. Um tremor nas pernas compridas dificultava a rapidez do compasso que queria imprimir na sua corrida: um fuga de si mesmo e em direcção a um tempo que não parava, apenas lhe escapava. Subiu as escadas, respirou fundo, soltou a farfalhuda cabeleira aromática e, em passo seguro, avançou para a sombra.

Cinzento. Insalúbre. Tinha sido aquele dia veraneante em Lisboa, feito de decisões que afectariam muita coisa para Raquel. Tinha chegado, finalmente, o dia do exame final de música, o dia decisivo que ditaria o final daquele longo percurso. Não saberia o que ia acontecer, sabia que não podia com o ar abafado que lhe afagava a nuca, a humidade que escorria do cabelo preso era contínua e as faces rosadas assinalavam algum compromisso que não poderia esconder. Afinal, o problema não era só saber como ia sair dali, dos espaços que guardavam séculos de música e os fazia perpetuar; era também, e sobretudo, saber se iria passar a um exame pior que esse.
Sentada numa cadeira rija e desconfortável, de uma estrutura básica, Raquel perdeu-se em pensamentos. Perdeu-se e às notas rítmicas também.
"Oh filha, pam pammm, pam pam, pan-pan-pan, pam! Vá lá, repete de novo desde este compasso até ao final. Tempo por tempo! Força!"
"Ok..Respirar fundo..Ai ai ai.."
Não via as notas, não via tempos, não sentia música naquele pedaço de folha amarelado. Só viu um rosto, duas faíscas na sua direcção e um tremor indescretível que não a abandonou desde esse dia, o dia em que trocara conhecimento com ele, através de um simples olhar, no comboio. A medo, mas com aparente segurança, ergueu a cabeça e marcando o compasso, leu em voz firme e elevada, o ritmo que faltava. Silêncio. Glup. Não conseguia encarar o júri, aquele olhos já não a viam mas indiciavam a saída, a saída para os despojos da ansiedade.
"Ok. Espera lá fora, certo?"
"Err..Claro, claro."
Saíu da sala de paredes caiadas e poeiras dançantes. Sentava-se, levantava-se, roía as unhas, procurava coisas para observar e distrair-se, falava com todos os que passavam, esfregava as mãos pelo cabelo árido, mas nada disso a entretia realmente. Aquele momento era o pior, sempre o tinha sido e se chumbasse de novo, não iria insistir em voltar a trepar aquela parede. "Kaput. Desisto disto." Decidida, sentou-se, absorta em pensamentos leves e deixou-se transportar, deixando de ver as estantes antigas, a mesa de madeira maciça ou as partituras amarelas e velhas. Semicerrou as pálpebras num sinal de distante nostalgia e aterrou naqueles olhos, naqueles pilares que a chamaram, infinitamente, durante pouco mais de dez minutos. Queria desviar, soltar-se, mas não conseguia, os seus olhos colaram-se aos dele e saltaram para a sua alma, ele fazia amor com os olhos, num olhar aveludado, numa fixação que ela nunca sentira. Perdeu-o nesse dia, porém, reencontrou-o.
"Raquel, filha, dá para o 10.."
Acordou. Não ouviu nada e mirou a Professora materna com ar interrogativo.
"Passaste!"
Uff..Um alívio sobre forma de expiração ouviu-se na sala. Raquel sorriu e partiu, numa desenfreada procura para sair dali para fora. Sair dali para fora e colmatar com as dúvidas dissonantes que ecoavam na sua cabeça.
Nas suas calças de ganga cinzentas e top branco, voou dali para fora e procurou o sítio onde ele trabalhava. Não conseguiu resistir ao mais forte, àquela sensação mista de loucura e desejo que a consumia e procurou, procurou sinais do passado que a pudessem alimentar até à noite. Apesar da ausência dele, observou todos os cantos, todos os acontecimentos e detalhes que se seguiram ao primeiro contacto no comboio, um forte embate frontal, a pouco mais de um metro de distância. Ali tinha sido o ponto do reencontro, do reconhecimento, o sítio em que se viram e chocaram inúmeras vezes, sempre na procura do outro, de um sorriso, de uma palavra. E nesse limite espacial e temporal, Raquel perdeu-se, rendida a um sentimento que se via impedida de dominar, enclausurada numa divisão entre quatro paredes, sem porta e com uma única janela para o mar. Dali não conseguia sair, apenas vislumbrar algo de infinito e belo, uma linha sem fim que queria puxar para si e seguir, seguir, seguir..
Os olhos brilhavam, a troca de palavras na caixa elevou Raquel às nuvens e a persistência dos pensamentos pecaminosos levou-a a dar ao rapaz do comboio o que de mais útil um homem poderia querer ter: o seu número de telefone.
.......To be continued......... (lol)

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