março 28, 2007

Uma desconhecida sabedoria

Silêncio.
Algures entre um diabo de pedra e um vampiro, com a cara do Brad Pitt, estava a minha realidade onírica. Umas escadas apareciam e eu corria. Vi ao fundo um oásis – coisa maaaaais estranha, um oásis reluzente no meio de uma gruta de ossos – e tropecei enquanto tentava lá chegar, dando um pontapé no clone do Brad Pitt. Pois é, eu saí do Karaté por algum motivo. É que nem que fosse o Mestre Yoda da Guerra das Estrelas, conseguiria “feel the force”. Bem, se eu fosse mesmo o Mestre Yoda, tinha conseguido partir o queixo daquele sanguessuga magnífico e saído, na minha magnificência de metro e meio, para um paraíso semelhante ao dos catálogos das agências de viagens, que afinal não são paraísos nenhuns. É tudo um misto de pixeis controlados, cromaticamente, por uma maquineta da treta. Mas não. Em vez disso, fui apanhada pelo diabo de rochedos que me atacou em forma de cócegas, ao contrário do que seria esperado em qualquer pesadelo de acção, à boa maneira de Hollywood. E ria-me, parecendo lançar um dó no 2º espaço da clave de sol, ondulado e esguio – já parecia aqueles desenhos animados irritantes dos Pokémons e Não sei quê ons.
“Sofia!”. Era a minha mãe, de tez escura e figura redondinha, a buzinar-me aos ouvidos: estava a ser servido o prato do dia.
“Tá bem..Já vou.” Ainda não percebi qual é a eficiência produtiva de alguém se levantar às oito da manhã para tomar comprimidos, e depois ficar o dia todo, enchouriçada num robe ranhoso rosa, a ver as tristezas de fulano tal na televisão. Depois da operação ao joelho tive que gramar com isto, e acreditem que eu sei o que é sofrer. Sei, sei. Não tanto pelas dores no joelho, mas pela pobreza de “algo interessante” que me rodeava já há semanas – excepto pelos sonhos surreais que tinha, fiéis, apesar de tudo, à minha pequena grande pessoa.
Levantei-me. Eventualmente, tinha de ser. Não é verdade? Tinha os meus cabelos, escuros e ondulados, todos irriçados e quebradiços. “Fructis..Não vales nuclis, pá!”, resmunguei. Tomei os comprimidos da praxe e comi uma torrada semi queimada – graças à minha mãe que ainda não aprendeu a mexer com a torradeira nova da Moulinex, tadita.
Silêncio. Agora estava só de novo, recheando aquela cozinha pequena e escura com o meu olhar esverdeado. Glup. Engolia a torrada numa ausência de acção aterradora, diluída apenas pelo tic tac do enorme relógio de plástico branco, pendurado numa parede qualquer ao lado. Assustei-me. Percebi que tinha outro dia pela frente, repetitivo e semi-côxo - e semi qualquer coisa..faltava meia perna para ter um dia completo. Levantar, comprimidos, comer qualquer coisita, tv, tv, tv, tv, wc, comer mais qualquer coisita, etecetera e tal, monotonia e sonhos super-hiper- megaaaaaaa...não sei...qualquer coisa de extesiante.
Assim, decidi continuar na minha vida fechada, dialogando com os meus pensamentos dignos de um filme de terror e suspense, - já agora com a participação especial da personagem do Bruce Willis na série “Modelo e Detective”, pois claro, que gosto muito e muito e muito – desta vez a assistir ao “Passeio dos Tristes” com o Tótó Gabriel.
Trim trim. O telefone a tocar a estas horas? Apoiei-me nas canadianas e, perfazendo o ritual complicado da minha deslocação de aleijadinha de trazer por casa, alcancei o telefone-varejeira.
- Tou? – silabei, com o tom monótono e indiferente do costume.
- Olá, Sofia.
Uma voz do outro lado, que eu não fazia puto de ideia quem fosse – ou pelo menos, não estava a reconhecer no momento – tinha proferido o nome mágico.
- Sim? Quem fala?.. Ah, és tu Luísinho pançudo? Podes parar de fazer essa voz de papão esfomeado, que isto aqui não é nenhum concurso para reproduzir vozes para o dia das bruxas.
- Tu não me conheces, Sofia – insistiu, naquela voz de rouquidão profunda, quase como se estivesse à beira da morte.
- Ai não? Tens a certeza?...Mas quem és tu, então? O Super Homem? Ah já sei..O Pai Natal! Olha, daqui a uns meses deixa-me ali na árvore artificial um carro vermelho descapotável para dar umas voltinhas quando estiver fina. Hãn?
Silêncio. O Luísinho era um amigo de infância e, passados tantos anos, não me recordava de ele estar mais de dois segundos calado. Falava pelos cotovelos o miúdo. Silêncio. Não. Decididamente, não era ele.
- Desculpe..Já percebi que não é o Luís. Mas como é que sabe o meu nome?
- Sofia, sou um desconhecido que segue a tua vida há semanas. Não sabes quem eu sou, possivelmente nunca irás saber. Mas tive de te ligar, temos de falar.
Àquela altura do campeonato, já tudo era possível e deixei-me levar pelo jogo.
- Temos de falar o quê?
- O meu nome..não interessa. Todos os dias, desde que ficaste em casa depois da operação, te tenho acompanhado e - não o deixei acabar.
- Tou a ser espiada? Que direito é que tem de fazer isso? – disse, enquanto enrolava os fios ondulados do meu cabelo.
- Desculpa, mas deixa-me acabar. Vi-te um dia à janela a ver a rua e percebi que tavas triste. Só que também entendi que nada fazias para poderes sair de casa.
Silêncio. Fiquei calada, esperando uma continuação. O Tótó Gabriel estava a dançar o rancho folclórico na televisão, em directo, e eu apoiada numa quase bengala, deixando a minha vida fugir.
- Pouco lutas, Sofia. Resignaste-te à tua condição e tornaste-te num vegetal. Tens esses olhos grandes, encharcados de fúria e revolta, mas páras à frente da televisão.
Aproximei-me da janela. Seria alguém que morava no prédio de 10 andares da frente? Como é que ele sabia quem eu era? Torci o narizinho empinado, intrigada.
- Nada sabe de mim para fazer esses comentários. E se estou aqui, todos os dias, é porque tem de ser. – remexia no buraco do bolso do meu robe, como se não encontrasse um fim.
- E os teus pensamentos, Sofia? Lutas para vencer as tuas dificuldades? Falas com outras pessoas? Fazes alguma coisa de útil para ti?
Começou a chover. Estava junto da janela a mirar cada vidro habitacional da frente – havia dezenas de janelas, nunca iria vê-lo. A chuva, forte e pesada, enublou a minha visão e aí uma figura esguia surge, de cadeira de rodas, junto à vidraça da janela com o telefone vermelho ao ouvido. Juntos, naquele cenário distorcido pela tristeza da chuva, observávamos a silhueta do outro, tocando em pensamentos indizíveis e incontroláveis, num sorriso de cumplicidade mútua, remetendo para o silêncio a força das nossas semelhanças.

1 comentário:

Anónimo disse...

Gostei, bem escrito
Diogo