março 28, 2007

O Roupão de Lena

Um novo dia alvorecera.
Envolta no quentinho dos lençóis de linho, cobertos pelo edredon francês, Lena desperta, suavemente, com um raio de luz a incidir-lhe no olho esquerdo. Os seus movimentos, ainda presos e ligados ao passivo estado adormecido, são curtos e incompletos, procurando esconder o seu corpo da luz para mergulhar, de novo, num sono profundo.
O chilrear dos pássaros e o relinchar de um cavalo irrompem pelo seu quarto, estimulando os seus sentidos, fazendo com que as suas pálpebras inchadas se soltem, querendo fugir da luz da aurora, que insiste em ferir os seus olhos. Resignada, Lena cede, expondo as pupilas castanhas à luz clara do seu espaçoso quarto. Perante si estava um roupão vermelho vivo, pendurado num bengaleiro de carvalho, de uma extravagância sem fim, feito de um veludo suave ao toque.
Lena levanta-se, aconchega-se por entre a teia da camisa creme bordada, de longas mangas rendilhadas, calça os chinelos de um “ fru-fru” balançante e veste o roupão vermelho. Pregiçosa, a mulher desloca-se, num passo arrastado, até à casa-de-banho, no outro lado da divisão. Diante do espelho oval, Lena observa-se. Do alto dos seus trinta e dois anos, aquela mulher possuía uma pele cor de leite, uns cabelos lisos e sedosos, escuros como o fim de um futuro perdido. O recente acordar conferia um carácter desalinhado ao cabelo, um conjunto de ondas dispersas na sua densa massa capilar. Contudo, a alvura dos olhos grandes e castanhos-avelã dava a Lena um toque de suavidade feminina, reforçada por uma noite bem dormida.
Olhou-se ao espelho, observou cada linha do seu rosto, perdeu-se num passado magoado que não queria recordar. Desde muito nova que mais nada via e conhecia que o seu pobre rosto, nú e despido, nas ruas perigosas da nova sociedade urbana. Órfã desde os cinco anos, Lena cresceu num dos orfanatos da capital, onde os maus tratos se sucediam, minuto a minuto, numa insegurança diária, afastando-a do mundo que, outrora, desejara conhecer. Numa adolescência amargurada, a bonita moça de olhos grandes não aguentou a infelicidade, ao invés, aprendeu a defender-se, a magoar em vez de ser magoada. Escapou aos dezasseis anos, acabando sozinha num beco incerto de Lisboa.
De média estatura, Lena ficou uma linda mulher, com olhares, gestos e cheiros que amaciavam o pesaroso estar dos homens. Viveu assim, anos após anos, escondendo em cada cigarro queimado e em cada olho, pintado e delineado, a personificação de uma dissimulação interessada, desprovida de sentimentos e de falares espontâneos. Ruas, bares, discotecas, balcões de cafés, restaurantes e casas do mais falso uso: Lena era uma protagonista, incontestável, nesta geografia pertencente a uma teia indigna de acção, onde a luxúria de um prazer instantâneo se deslizava entre corpos sem rostos, caras de cínicas risadas. A cada “tic tac” daquela versátil mulher, a agilidade tornou-se na sua ascensão, dando a Lena o gostinho ambicioso das aparências.
Despe o roupão vermelho, entra na banheira de mármore branca, apressada, procurando o escorrer da água fervente no couro cabeludo, o sentir de um vapor envolvente que a proteja desse pecaminoso passado. A morena, nos seus maduros trinta anos, aproximou-se, numa acção planeada e meticulosa, de Sebastião Policarpo, o maior empresário do país, detentor de dezenas de empresas, tendo como principal área de intervenção a criação de animais –cavalos, galinhas, porcos- nas várias propriedades rurais que possuía, de norte a sul do país. Após investigar todo o potencial financeiro e social que aquele homem tinha para lhe dar, Lena não hesita, mascara-se, cria uma identidade e personalidade adequadas ao perfil e, na sua fatal subtileza de menina-mulher ingénua, doce e desamparada por entre réstias de névoa, captura aquele estragado coração. Sebastião, já cinquentenário, vê em Lena a eterna juventude de um fugaz amor, uma presença discreta, devota e dedicada.
Desde o dia do casamento, há dois anos, Lena vive em Santarém na “Quinta Policarpo”, a quinta central do empresário e residência oficial daquela família. Ligada há décadas de tradições, a uma brisa fresca entre héctares de oliveiras e às festas mais conhecidas e requintadas do país, nela a morena, de delicadas aparências, se fez destacar através de uma falsa singularidade, entre um golo de champanhe, um “clik” de uma gargantilha elegante e um apanhar de um tecido Paco Rabanne.
Num escaldar desse duche, Lena fecha os olhos, numa descontração risonha, repartida entre um deslizar de água e uma nublina emergente, indicadores do seu conforto. Lena enrolada numa toalha com um bordado francês, no qual um “L” maiúsculo vermelho ganha ênfase, passa do mosaico geométrico da casa-de-banho para o soalho flutuante do quarto. E lá, o sol primaveril embatia, através da janela de guilhotina enmadeirada, com fulgor nos lençóis amachucados. Abre o guarda-roupa antigo de carvalho. Tira uma camisa branca, umas calças pretas, combinadas com um cinto de pele preta e umas sandálias de salto pretas. Rente ao seu espelho oval do balneário, Lena prendia, finalmente, a volumosa negritude da sua cabeça, acabando por colocar uma sombra discreta nas transparentes pálpebras e um leve rosa velho nos lábios. Observou-se, novamente. Os lábios finos, dois olhos grandes retocados por escuras e compridas pestanas faziam dela uma mulher de interessante descrição: Lena Policarpo, a fiel, frágil, sensível, tímida esposa do mais rico homem do país.
Esfomeada, Lena abre o frigorífico na enorme cozinha de janelas de madeira e azulejos beje, cuja linha central era feita de cachos de uvas e maçãs, frutos de várias côres, procurando algo para se deliciar. O silêncio da casa era esmagador e, para se unir à banda sonora do exterior, Lena pousa o pacote de leite na bancada de mármore e abre a janela do seu lado direito, numa das esquinas da sumptuosa cozinha. Recheada de tachos, de panelões e, petrificada, Lena observa a silhueta de um cavalo castanho e manchado em movimento, pequeno e veloz, descontrolado por entre aquelas planícies povoadas por árvores e flores. À medida que acompanha o seu relinchar, vislumbrou, no topo do animal que mirava, um jovem: Filipe Policarpo.
Os olhos castanhos daquela mulher tornaram-se duas chamas de velas, dois pontos longínquos entre altas montanhas, duas submissões de desejos perdidos. Junto àquela janela, Lena entrou noutro mundo, onde a visão de um anjo loiro não a deixava respirar, sentindo que jamais o tempo ou o espaço pudessem matar aquele rubor que a invadia, aquela paixão que a ardia, vindos daquele anjo. O olhar de Lena se lança num horizonte infinito e o anjo cavaleiro desaparecia, selvagem e rebelde, matando a máscara daquela fraca mulher, fazendo-a cair no chão da cozinha para cansar aquele amor impossível que teria de esconder.
Um calor ameno do meio-dia acabara de se espelhar no nariz mediano e arrebitado de Lena.
De pé, virada para a vastidão da quinta, Lena aguardava, encostada ao janelão da grande sala de antiguidades. Longe daquele instante, elaborava planos para iludir os olhos daqueles supremos seres, sendo grande apenas a estupidez que aquela gente podia ter. Riu-se! Eram todos uns idiotas. Levou o copo de cristal aos lábios, deixando entrar um golo de “Monte Velho”, saboreando a finura daquela delícia de vida.
“Lena, querida! Onde estás, minha pomba?”. Lena coloca a expressão que mascarara, vira-se num gesto pacífico e fita o seu marido, utilizando um sorriso rasgado e luminoso. Sebastião Policarpo colou seus lábios nos dela, num gesto terno e rápido, deixando as linhas dos seus escondidos olhos verdes decifrar os dois pontos castanhos, amando num silêncio devorador de dezenas de milhares de palavras. Sebastião pega na mão de Lena, beija-a delicadamente, e dirige-se para a mesa, guiando-a, num gesto de amante irremediável. Assim, os dois almoçam, de olhares e palavras trocados. Cada risada daquela mulher de inocência jovem, brilhava aos olhos verdes e pequenos de um já velho de cinquenta e cinco anos, vivido de supremacias sociais e financeiras.
Rodeada de fumo, na ausência do marido, Lena cerra os olhos enquanto milésimas de pensamentos de uma estranha deslumbrância, a afagam, ao mesmo tempo que, estendida num divã grená, com as suas linhas capilares espalhadas, fixa um retrato à sua frente, desse anjo.
Passos. Lena torna a cabeça, languidamente, para a sua rectaguarda. Mas, numa fracção de segundo, o seu olhar desperta, assinalando também o tremer nervosinho do seu corpo contraído e fininho. Subitamente, a imagem de um jovem alto de um metro e oitenta, de belos cabelos encaracolados loiros e olhos de um verde inalcançável, entra no velho salão, emanando à sua volta uma aura repleta de luminosidade branca. Lena engoliu em seco. Filipe Policarpo, filho do dono daquele pedaço de terra, tinha dezoito anos, uma timidez inteligente, um escudo protector e desconfiado em relação a possíveis elementos intrusivos. Perspicaz e ágil, é detentor de um corpo esbelto, fortalecido pela actividade física regular que, desde sempre exercia, tendo como paixão a equitação. Culto, o actual campeão de xadrez nacional ajuda nas horas livres o seu pai, reconhecendo-o como um homem de referência, um representante de tudo aquilo que ele gostaria de poder um dia ser.
“Não queres comer nada Filipe?”, interrogou Lena, afastando duas madeixas de cabelo das bochechas rosadas, no seu ar tímido.
“Não, obrigada. Se tiver fome, vou ao frigorífico e cozinho qualquer coisa.”, respondeu Filipe, num tom seco e indiferente, ao mesmo tempo que se deitava no longo sofá de pele castanha, em frente do divã grená. Ficou de olhos fechados e cabeça apoiada nos braços cruzados, numa postura de leve descontracção, onde o cabelo húmido e despenteado lhe dava uma sensualidade rara, acompanhada pelo suor que encharcava a camisa de xadrez azul e a sujidade entranhada daqueles acres.
“Porquê?”, pensava Lena, franzindo as simétricas sobrancelhas. Aquela atitude de desdém magoava-a. Ela sabia que o enteado nunca gostara dela, que a única pessoa que não tinha conseguido enganar até então, representava tudo o que naquele momento desejava e, no entanto, também sempre tentara repudiar. No silêncio daquela sala, apenas quebrado pelo camponês barulho e pela respiração adormecida de Filipe, Lena esticou-se até à mesinha ao lado do grande divã, agarrando um cigarro, nervosamente. Acendeu-o com um isqueiro dourado, ao mesmo tempo que os olhos se humedeciam, procurando apaziguar a forte dôr que atacava o seu peito. Naquela sensação de agonia, de perda, Lena fumou cada cigarro num prazer rápido, matando cada pedaço rejeitado de si mesma, na esperança de olhar para um anjo que amasse a janela vislumbradora do seu corpo.
Filipe abre os olhos. Tossindo, levanta-se, mal disposto.
“Já que queres estragar a vida do meu pai, ao menos, respeita as coisas dele.”, afirmou Filipe, encarando Lena numa réplica de confronto. Virou costas e andou, num passo tranquilo, até desaparecer naquelas curvas escuras.
O céu escurecera, lentamente, estando o horizonte habitado por uma névoa rosada que serve de tecto para as aves ribatejanas.
No seu quarto, Lena transforma-se. “Ninguém me escapou, não é um fedelho desmamado que o vai conseguir!”, exclamou frente ao espelho oval da casa-de-banho. Já não era a mesma Lena, não. Usando um vestido “Gucci” preto comprido e justo ao corpo, exibia um “decote em V” na frente e outro mais rasgado atrás. O vermelho vivo cobria os lábios finos, sensualizava a pele transparente, dando à cara desta fachada de ingénua rapariga um ar de quente e abrasadora mulher. Os cabelos, agora soltos, lisos na sua harmonia, reluziam a feminilidade de Lena, fazendo dela irresistível. Olhou-se ao espelho.
Confiante e bela, Lena, nas suas passadas certas, dirige-se para o jardim. Avista Filipe, uns metros à frente, numa espreguiçadeira de madeira, de camisola de lã vermelha, sentado a ler. A serenidade daquele dia começava a dar sinais do seu fim, levantando-se o vento e enublando-se o céu, como se de um abismo se tratasse. Lena coloca-se à frente de Filipe, num olhar de aço voraz e lábios ardentes, mas Filipe, apesar de dar conta da sua presença, repudia-a.
“É melhor o meu pai não te ver assim.”, afirma.
Lena, mesmo assim, avança, senta-se junto a ele e beija-o num impulso de paixão inflamada. Ele empurra-a.
“Metes-me nojo!”, exclama Filipe, sintonizando o seu discurso com um empurrão a Lena que, por força e resistência, rasga uma migalha do seu “Gucci”, assistindo à saída de Filipe do cenário que tanto planeara. A “Quinta Policarpo” está enfeitada com folhas, símbolos de uma noite regida pela imperial lua cheia, e pó nos olhos de Lena que, transtornada, vê o facilitismo da beleza maquilhada se esvanecer. O vento se revolta, transformando a sua cabeleira num cruzar de fios ásperos e secos, com a poeira na raíz e nos lábios agora invisíveis.
Pum. Lena ouve passos distantes.
“É o velho.”, pensa para si, com ódio de tudo. Por entre a perdição fantasmagórica da noite, Lena rasga o seu vestido. Ao mesmo tempo, ouve uma sinfonia de Berlioz ecoar naquela sala, feita das suas amarguras, feita dos olhares e dos desejos rejeitados.
Berlioz preenchia a sala vasta.
“Se continuarmos assim, podemos abrir uma nova sucursal em Guimarães!”, explicava Sebastião a Filipe, durante o jantar, deliciando-se com o bacalhau cozido, temperado com tirinhas de alho crú e muito azeite.
“Óptimo! O João Pedro ligou-me hoje por causa do campeonato europeu de xadrez..Parece que querem mesmo que participe.”, respondia Filipe, com o sorriso nos dentes de marfim, levando uma metade de batata à boca.
Naquela melodia forte e clássica, as notas difundiam-se, como se escapassem de uma longa estrada, pequenas e suaves, para depois, rebater umas contra as outras, pressagiando o desenlace dessa noite.
“Basta!”, grita Lena, olhando Filipe ferozmente, enquanto surge na sala, desarranjada.
“Querida, mas o que te aconteceu?”, interroga Sebastião, deixando cair um nico de bacalhau no prato.
“Diz-lhe, aposto que ele vai gostar de saber”, afirma Filipe enquanto se levanta, rapidamente, da mesa. Lena mira Sebastião e, num andar envergonhado, enrola o choro mimoso, encostando-se ao marido.
“Querido, o teu filho abusou de mim! Olha para mim! Olha para o meu estado..”, grita Lena na voz embargada, revelando os rasgões da roupa e as indefesas da alma perdida.
Sebastião encara Filipe, enquanto os sopros de Berlioz, no seu fortíssimo, se reflectiam na expressão do jovem, anunciando a retirada daquela sala. Impestuosamente, o anjo pega nas suas chaves e, sem hesitações, deixa a quinta na velocidade ruidosa do seu “cabriolet”. Lena larga Sebastião, subitamente.
“Não!”, exclama, confusa e deprimida, correndo para o seu quarto, consciente daquele erro incontornável. Sebastião chama-a, num bater de porta, mas em vão.
“Lena! Lena!” Aquele nome já nada significava. Lena tira a roupa rapidamente, lava-se no lavatório curvado e veste o seu roupão vermelho. Encosta-se aterrorizada, de olhos esbugalhados e espicaçados, à parede branca. Cai no chão, estatelada.
Ring ring. Passos. Uma voz. Lena escuta a rouca voz de Sebastião ao telefone. “O Filipe teve um acidente?..Não, não pode ser!”, falava Sebastião na solidão da vivenda abandonada, na aguda linha do seu choro.
Lena, enrolada no extravagante roupão vermelho, rompe a correr pelos corredores labirínticos, na loucura da voz riscada, nos gestos desenfreados de uma loucura, em direcção à quinta. Na tempestade da noite fria, húmida, onde fracções de segundos se estendem com os relâmpagos tenazes, Lena perde-se, morta pelo desgosto. Atormentada pelo remorso, está apenas coberta pelo vermelho trágico do veludo de roupão, imersa naquela densidade impenetrável, amparada pelo frio da chuva severa. Sente-se empurrada, seguindo o caminho para o limiar da sua vazia vida, colocando-a num abismo que jamais voltaria a conhecer, após o seu rosto, pálido e pequeno, deslizar nas águas turvas de um poço qualquer, num sítio qualquer.

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