setembro 08, 2015

Colisão Frontal, eucaliptos e a dor da independência (VII)


Perdi-me no raciocínio. Assim numa impercetível rajada, fiquei atordoada e nada me conseguia elevar os sentidos, ainda que estivessem rodeados de berloques dignos de um alto nível de entretenimento. Nada. Nem luzes, nem vozes sussurradas, nem sequer o ligeiro ronco que de mim emanava, à medida que os segundos, minutos e horas passavam, e começava a ganhar volume, um som misto e sincopado, fora de tempo, em forte crescendo, suplicando por comida. Fiquei ali. Especada a olhar para o pequeno ecrã do telemóvel cor-de-rosa. Não percebia. "Estás-te a meter comigo?", atirei em silêncio.

Seria aborrecimento, uma agenda inadvertidamente vazia no último minuto ou, pura e simplesmente, um ronco semelhante ao meu, mas num piano crescendo, apelando ao fim da saudade? O palco brilhava. Centenas de cabeças, de texturas, cores e geometrias delirantes regavam o entusiasmo entre quatro paredes. Preenchidas de interesses privados, o mais publicamente possível. Dançávamos como se fosse o fim do mundo, decretado para daí a meia hora ou, quiçá, a uns meros 15 minutos. Rodas e rodas de sombrinhas humanas abrigavam o chão, roçavam nos braços das cadeiras, vermelhas e almofadadas. E eu movia-me ao som da batida mais comum, entregue às profecias vociferadas de um homem a dançar como um saco de batatas no palco e com um ténis diferente do outro. Naquela altura não fazia ideia de nada, mas o melhor é mesmo nem pensar muito. Para não criar ilusões. Parei, com a sensação de peso na mão direita e lembrei-me. Da mensagem.

Olhei para o lado. A Ana Carolina já parecia estar "despachada" da purgação dos seus pecados, ao som de uma bateria tricotada, entre buzinas, sirenes de ambulâncias e uma voz sensualmente vaga. Disfarcei o minha fixação com um sorriso e guardei o telemóvel no bolso dos calções. Levantei a cabeça, indecisa. Até que... retirei o telemóvel, para dedilhar a seguinte mensagem:

 "Olá! Tudo bem? Sim, eu pensei que o carro andasse, mas ainda não é desta... Teve de voltar para a oficina. E com a mota, tudo fino?". Enviada.

Sim, era verdade, o M. tinha acertado na muche. O Twingo já estaria arranjado, mas foi falso alarme. Mal peguei nele, descobri que o motor não estaria bem. "Bop bop bop bop...". Com tantas cuspidelas de peças desencaixadas, entre bifurcações e pontos de embraiagem, ter chegado ao destino desse dia foi uma sorte. Já o destino do carro foi outro.

"Malta, já passaram cinco minutos! Agora vão partilhar o que escreveram!", interrompeu Dinis, atabalhoando os meus pensamentos. "Ah pois é, deixa cá ver", atirei para o lado. Com um ar tímido, a minha parceira de jogo deixou um riso sufocado fugir. De olhar mudo, sorrimos as duas e, sem demoras ofereci-me para dar a conhecer, em primeira instância, a minha (longa) lista.

Aquele tinha sido um ano difícil. Assim de cabeça contava duas relações destrutivas, menos cinco quilos, uma caixa de cipralex e um acidente de viação. Ah e, já agora, o desgaste emocional no seio familiar. Mas se não fosse isso, talvez não tivesse tido a coragem de dar o passo que estava prestes a dar: partilhar um apartamento com uma recente amiga em Lisboa. (In)felizmente, o único mal no mundo não é só o nosso. Diante de Ana Carolina, entendi claramente o porquê daquela tristeza nos olhos velados conseguir ser maior que as dúvidas daquele verão arrastado. "Sou farmacêutica, mas fiquei desempregada. Estou assim há ano e meio. Tenho 35 anos e não tenho um namorado há anos. A minha mãe está doente e tenho de tomar conta dela. E tu?" Engoli em seco, à espera que as palavras me saíssem certinhas e certeiras. "Tenho um trabalho estável há quase dois anos, não tive nenhum problema grave de saúde, a não ser uma pequena depressão." O outro lado parecia imóvel e é nestes momentos que um segundo pode-se arrastar pela linha do tempo, esfomeado e sedento de algo que o preencha, multiplicando-se por mil e cem prisioneiros desprovidos de vida. Não sabia mais o que dizer.

"Bora lá, malta! Partilhem as coisas, confiem." O Dinis saltava no palco, feito fantoche num festival de marionetas sob um foco de luz alérgico à retina ocular. Pi, pi. Pi, pi. O telefone toca. Uma música mix de elevador ecoa pela sala, abafada pelo conjunto das vozes.